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A greve dos roteiristas de Hollywood já representa um marco da luta de classes no século XXI

Artigo

Gabriela Palombo

Por meio do cinema e da TV, a produção hollywoodiana contribuiu significativamente para consolidar no imaginário do mundo “o sonho de vida americano” como símbolo das virtudes do sistema capitalista. No país das oportunidades, da liberdade, do livre mercado e da meritocracia, bastaria a vontade de trabalhar duro para que a prosperidade chegasse a quem se esforçasse.

Com a chegada era digital, marcando assim o fim da era analógica na virada dos anos 2000, o aprofundamento da agenda neoliberal, as relações de trabalho, o modelo de produção e a própria economia global assumiram novo dinamismo em todo globo.

Grosso modo, a combinação desses fatores: transformações sociais com a popularização da internet e a manipulação ideológica disseminada a partir de Hollywood – estimulou um ambiente onde luta coletiva, representação sindical, ação organizada, exploração do trabalho, resistência ao sistema, enfim, toda ideia que remetesse ao conceito de “luta de classes” passasse a ser percebida como um folclore oriundo de tempos remotos.

Formou-se uma espécie de consenso tácito no inconsciente coletivo de que o capitalismo seria fruto da ordem natural das coisas e questioná-lo sequer faria sentido, praticamente uma heresia.

A paralisação dos trabalhos pelos roteiristas de Hollywood teve início em maio, trazendo três principais reivindicações: pagamentos mais justos, melhoria na rotina de trabalho e maior regulamentação de ferramentas de Inteligência Artificial. Em julho, o movimento ganhou força com a entrada dos atores, que traziam exigências comum em relação à inteligência artificial e remuneração. Embora ambas categorias sejam sindicalizadas, esta é a primeira vez desde 1960 que os dois sindicatos entram em greve juntos.

Do outro lado, a Aliança de Produtores de Cinema e Televisão (AMPTP) que reúne gigantes do cinema como Disney, Warner, Paramount, Universal e Sony, bem como grandes emissoras dos EUA e streamings como Netflix e Amazon Prime Video.

Primeiro fato que explica a longevidade da paralisação está justamente na união das duas categorias. Atores e roteiristas desenvolvem um trabalho codependente, seria pouco provável que a greve chegasse tão longe deixando os estúdios refém da disposição dos grevistas se uma categoria se voltasse contra a outra. Esta união é determinante para a força acumulada até aqui.

Segundo fato diz respeito aos sindicatos. Diferente do que ocorre no Brasil, o sindicato de ambas categorias é forte e rigoroso. O impacto não é somente nas produções futuras, mas também na divulgação de filmes já prontos. Segundo as regras do SAG (Sindicato dos Atores de Hollywood), atores não poderão atuar nem promover nenhum título, seja ele um filme ou série, em entrevistas coletivas, pré-estreias, tapetes vermelhos e divulgações em eventos como a Comic-Con ou em redes sociais.

A 75ª cerimônia do Emmy Awards foi adiada para 15 de janeiro de 2024, segundo um comunicado publicado pela Academia de Televisão. Essa é a primeira vez que o evento é adiado desde 2001, quando foi postergada devido aos ataques de 11 de setembro., eventos e atividades de divulgação ou premiação das produções.

É difícil mensurar os impactos da greve, mas produções previstas para esse segundo semestre já foram canceladas e há revisão de prazos indicando lançamentos para 2025. Mais de 3 bilhões de dólares são estimados em perda por parte dos estúdios desde o início da greve.

De forma premeditada ou não, esta greve foi se desenrolando bebendo da cartilha marxista  sobre a luta de classes. A organização dos trabalhadores é ponto determinante para o êxito desse tipo de enfrentamentos. Não só se organizaram, como se uniram. Ao se unirem, neutralizaram as estratégias básicas de “dividir para conquistar” como costuma ocorrer quando há disputa entre categorias.

Ao estabelecerem uma representação sindical forte e rigorosa, neutralizaram os “fura-greve”, outra estratégia comum por parte dos patrões para manter parte da produção ativa, evitando assim não só os prejuízos financeiros, mas a inversão da correlação de forças que os empurraria a ceder em concessões ou acordos com os grevistas.

A globalização que contribui para a disseminação de ideias e valores a serviço do capital, também se mostra aqui como elemento contraditório pois o resultado das reivindicações das categorias, atores e roteiristas, servirão, como já servem, de parâmetro para trabalhadores do segmento em todo mundo.

No sentido restrito à pauta da greve, o movimento já é vitorioso. Embora alguns pontos ainda estejam sob impasse, já há avanço significativo na pauta sobre remuneração, estrutura de trabalho e uso da Inteligência artificial. Por todos os acertos dessa greve, o “tempo” para seu fim corre contra os estúdios, portanto, a correlação de forças permite fôlego para que o movimento siga em negociação.

De um ponto de vista macro, a greve carrega um simbolismo profundo na medida em que se vale de conceitos e ideias que o sistema buscou convencer serem impossíveis ou “erradas”: luta coletiva, organização do trabalhador, representação sindical, enfrentamento aos poderosos, falhas no capitalismo.

Mas é no fato da luta se dar por dentro das engrenagens da indústria que vendeu o “sonho de vida americano” como modelo de felicidade para o mundo que a fina ironia da história se manifesta. E de maneira implacável!

Redação

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