Fernando Passos*
Em 20 de julho de 1963 cheguei ao mundo. Justamente nesta terra central do Estado de São Paulo, chamada Araraquara. Portanto, a cidade já possuía 146 longínquos e portentosos anos. Como era costume à época, com apenas 03 dias de vida, meus saudosos pais Hellé-Nice e Neil foram com os amigos Enevaldo André (de saudosa memória) e Antonia Lucia André que goza de boa saúde à Paróquia de São Bento para que eu fosse “solenemente batizado” conforme expressão que consta da Certidão da Diocese, Livro 84, folha 141, nº 379. Cresci como as crianças da época: Ensino publico obviamente, muita diversão nas ruas e praças, me esbaldava nas enxurradas em dia de chuva forte, esperava a boiada passar em frente de casa. Era uma vida muito feliz, mas basicamente nas ruas. O leitor não leu errado não. Embora tenha nascido na rua dois, bem à frente do córrego do ouro (onde hoje passa a via expressa), logo nos mudamos para a avenida Djalma Dutra, antiga Guaianazes. Morei minha infância toda há apenas 150 metros de onde nasceu nosso imortal Ignácio de Loyola. Mas ele já tinha ido para São Paulo. Então, a Djalma Dutra era caminho de boiadeiros a atravessar a cidade com suas boiadas. Havia muita tenção. Medo de que algum gado escapasse e ferisse as crianças. Minha casa tinha portão muito baixo de madeira, portanto, hoje diríamos perigosíssimo. Que nada. Subia no portão e via aquela manada. Era sombrio, um pouco assustador, mas ali estávamos a celebrar.
O Jardim público e os Oitis da rua 05 já eram consagrados. Todas as crianças após os 07 anos já iam caminhando sozinhos para a Escola. Fui alfabetizado pela mamãe, exímia professora do Antonio J. de Carvalho. Dormia muitas vezes na casa de minha avó, na avenida São Paulo na Vila Xavier muito próximo a Igreja de Santo Antonio. Pasmem, com cerca de 08 ou 09 anos, Regina que trabalhava com vovó me vestia (havia uniforme obrigatório) e caminha sozinho até o Antonio J. Ida e volta. Adorava passar pelo pontilhão especialmente com trem acima em movimento. Era também sombrio e assustador. Ir a pé mesmo em região tão movimentada, não vislumbrava perigo algum. Na 6ª série tive a honra de ser admitido no EEBA. Eu e o colega Reginaldo íamos a pé, todos os dias pela rua 05 sombreados pelos Oitis. Éramos quase adolescentes entre 11 e 12 anos. Pelo caminho muitas vezes levamos a colega Noemi Correa, que posteriormente viria a estudar Direito na São Francisco junto comigo, sua irmã Sara e o saudoso Danilo Reis. Noemi constituiu respeitável carreira no Ministério Público Estadual, hoje tendo se aposentado. Ela morava nos arredores.
O “Parque infantil” já era grandioso e por lá passamos alguns intervalos do EEBA, embora preferia mesmo o pátio escolar. Com o que se denominou “rede física” estudantes tinham que estudar perto de suas casas. Fui então, na 7ª série transferido para o Victor Lacorte no Carmo. Sempre caminhando (já havia mudado para a XV de Novembro) foram anos extraordinários. Muitas vezes cortava caminho pela padaria do Sr. Lima e ganhava ali alguma guloseima. Sempre constituí grupos de estudos em casa. Minha mãe incentivava. Possuíamos em casa umas das maiores discotecas (de vinil por óbvio) para jovens. Era eclética e fazíamos muitos bailinhos em nosso quintal. Papai até construiu dois singelos cômodos para isso. As “brincadeiras dançantes” de nossa casa, como eram chamados os “bailinhos” eram bem famosas e abertas para todos. Nunca me lembro de uma briga sequer.
Vi, portanto, Araraquara se transformar dessa cidade ainda um tanto bucólica mas já com ares de cidade média na importante cidade que hoje representa. Na verdade, não vi. Vivi intensamente. Como meus pais eram muito simples, participei ativamente do cotidiano da simplicidade. Com o surgimento da Livraria Acadêmica (um dia escreverei mais sobre isso) minha vida já havia mudado. Os colegas iam para as ruas o que estavam certos. Eu após as tarefas e muitas travessuras gostava mesmo ir para a Livraria. Acadêmica foi fundada pelo papai. Ali conheci grandes escritores, poetas, músicos, pintores da Escola de Belas Artes, intelectuais, gente das letras que amava Araraquara. Ali conheci também e muito conversei com Wallace Leal, sem, contudo, saber sua verdadeira dimensão.
Essa a Araraquara de meus primeiros anos. Cidade onde plantei sonhos e colhi lindas realidades. Dos 208 comemorados hoje, vivi pelo menos 62. Não é uma estatística ruim. No meu livro de crônicas “Ouvido à Escuta de Encontro ao Mundo”, um livro de amor à vida e à Araraquara, Ignácio escreveu no prefácio: “O cronista é o captador. Sequestrador. Ele olha e seu olhar é revelador. Isto Fernando Passos compreendeu. Daí nós todos cronistas colocarmos o ouvido à escuta de encontro ao mundo”. Assim espero. Viva nossa querida Morada do Sol.
*Advogado, Professor, Coordenador do Curso de Direito da Uniara e colunista do Imparcial Araraquara