Com o golpe civil-militar de 1964 completando 60 anos, uma Audiência Pública realizada na Câmara Municipal de Araraquara, na noite de segunda-feira (1º), relembrou fatos ocorridos durante o período da ditadura militar (1964-1985) e fez a defesa do regime democrático.
O evento “Em defesa da democracia” foi convocado por requerimento assinado pelo presidente da Câmara, vereador Paulo Landim (PT), pelas vereadoras Fabi Virgílio (PT) e Filipa Brunelli (PT) e pelos vereadores Alcindo Sabino (PT) e Guilherme Bianco (PCdoB).
“Sessenta anos da data que colocou o Brasil na vala comum das ditaduras da América Latina. Que torturou, estuprou, esquartejou, jogou pessoas vivas de helicópteros”, disse Fabi Virgílio, que fez a mediação da Audiência Pública. “A ditadura é e sempre foi um dos momentos mais horrorosos e sombrios da nossa história. E é preciso sempre ser lembrada para que não nos afundemos nas profundezas de um regime autocrata e ditatorial”, complementou a vereadora.
Filipa Brunelli elencou desafios que a democracia precisa enfrentar para tornar a sociedade mais igualitária. “Como a gente vai falar de democracia, uma ideia que prega liberdade e igualdade, sendo que na prática não é isso que acontece na sociedade? Nós, grupos dissidentes, tidos como minorias políticas, lutamos constantemente para ter o nosso espaço na própria democracia brasileira. Nós sabemos que a saída é a democracia. Mas, como ela vem sendo conduzida neste país, ela não nos contempla ainda”, relatou.
Em sua fala, Alcindo Sabino relembrou a censura imposta pelo regime militar à produção cultural. “O Brasil teve um momento criativo de 1964 até 1968, quando houve o AI-5 [Ato Institucional nº 5] e começou a censura de uma forma muito rígida, a tortura, a falta de liberdade total não só dos artistas, mas do pensamento crítico da época. E qual era a justificativa para impedir a criação? A questão da moral e dos bons costumes. A gente ouve muito isso hoje, de novo”, disse.
Guilherme Bianco declarou que o evento é “um momento de reflexão de que Brasil a gente está projetando e qual é a luta política posta nos dias de hoje”. “Sem a organização coletiva e sem os valores democráticos, não é possível melhorar a vida do trabalhador, do araraquarense, do brasileiro, de forma geral”, acrescentou.
O golpe e Araraquara
O prefeito Edinho Silva (PT) afirmou que a realização do evento é emblemática para o município. “Araraquara, mais do que nunca, tem muito a dizer sobre o que representa a democracia, já que, no dia 8 de janeiro de 2023, nós estávamos com o presidente Lula visitando nossa cidade e vimos muito de perto uma tentativa de golpe no nosso país. Araraquara foi naquele dia a sede da resistência e da reação a uma tentativa de golpe”, declarou.
“Nós temos que ter memória do que representou a ditadura militar. Para aqueles que acham que a ditadura foi algo distante de nós, ela não foi. Nós temos uma freira enterrada em Araraquara, a Irmã Maurina, que foi presa e torturada pela ditadura. Araraquara é a cidade de José Arantes, assassinado pela ditadura militar. De Jurandir Garçoni, líder do movimento estudantil. De Tuta Garlippe, também filha de Araraquara. Jovens araraquarenses e uma religiosa que foram torturados. É algo que marcou a vida de Araraquara e provocou dor a famílias da nossa cidade”, continuou Edinho.
A deputada estadual Márcia Lia (PT) também recordou fatos violentos produzidos na ditadura e valorizou a democracia. “Nós temos que entender o quão valioso é a gente poder viver em uma democracia. A gente tem o direito de se manifestar, de ir e vir, tem uma Constituição Federal que foi democraticamente trazida para o país e que trata a democracia como um bem maior do povo brasileiro. Tudo o que passou tem que servir como exemplo daquilo que nunca mais a gente quer viver”, afirmou a deputada.
O professor Milton Lahuerta, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, destacou a truculência do regime ditatorial e a “ruptura com a construção civilizatória que a sociedade brasileira vinha fazendo”.
“O Brasil vinha, desde os anos 1920, com o movimento modernista e outros movimentos, afirmando o tema da identidade nacional, de construir uma cultura autêntica que articulasse as várias regiões do país. Essa dinâmica ganhou novos ingredientes na década de 1950, quando se acrescentou o tema do desenvolvimento. Um projeto que pudesse reparar as tragédias históricas que nós carregávamos, a maior delas a escravidão, e ao mesmo tempo projetar uma sociedade democrática e inclusiva. Não à toa, o grande eixo que movia [o presidente] João Goulart no período imediatamente anterior ao golpe civil-militar era o tema das reformas, com a reforma agrária como carro-chefe”, analisou Lahuerta.
O professor Edmundo Alves de Oliveira, representando a Universidade de Araraquara (Uniara), reforçou que os ideais democráticos devem ser seguidos por toda a sociedade. “Sinceramente, nós estamos no século XXI e eu não esperava estar tendo que debater uma ideia que acreditava estar já consolidada. Eu gostaria de estar discutindo aqui ideias de ampliação de direitos, de reconhecimento da diversidade, de busca de novas características civilizatórias, e não tendo que resgatar de novo o básico do básico da democracia. Democracia é convivência, é a gente entender o outro, mas o outro tem que aceitar também a democracia”, declarou Edmundo.
Também estiveram presentes na Audiência Pública secretários, coordenadores e gestores municipais, lideranças de partidos políticos e outras autoridades.
60 anos
O golpe civil-militar ocorreu entre os dias 30 de março e 2 de abril de 1964. O presidente do Brasil era João Goulart, eleito vice-presidente e que assumiu o comando do governo após a renúncia de Jânio Quadros em 1961.
Depois do golpe, presidentes militares governaram o país por 21 anos, até 1985: Humberto de Alencar Castelo Branco (1964–1967), Artur da Costa e Silva (1967–1969), Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), Ernesto Geisel (1974–1979) e João Figueiredo (1979–1985).
O período foi marcado por cassação de direitos civis e perseguição a cidadãos que se posicionavam contra o governo, práticas de tortura de dissidentes e censura à imprensa, à liberdade de expressão e sobre a produção cultural e intelectual.
O Brasil voltaria a ter um presidente civil em 1985, com a eleição indireta (feita por colégio eleitoral no Congresso Nacional) de Tancredo Neves — ele morreu sem tomar posse, sendo substituído pelo vice, José Sarney.
Os anseios da sociedade brasileira de voltar a escolher o presidente de forma direta, representados pelo movimento “Diretas Já” a partir de 1983, só foram atendidos em 1989, com a eleição de Fernando Collor de Mello pelo voto popular.