O presidente Jair Bolsonaro é denunciado por crimes contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. A iniciativa, protocolada na noite desse domingo, está sendo liderada por uma coalizão que representa mais de um milhão de trabalhadores da saúde no Brasil e apoiado por entidades internacionais.
A Rede Sindical Brasileira UNISaúde acusa o presidente de “falhas graves e mortais” na condução da resposta à pandemia de covid-19.
“No entendimento da coalizão, há indícios de que Bolsonaro tenha cometido crime contra a humanidade durante sua gestão frente à pandemia, ao adotar ações negligentes e irresponsáveis, que contribuíram para as mais de 80 mil mortes pela doença no país”, destacam.
Bolsonaro já foi alvo de uma outra denúncia no mesmo tribunal, envolvendo a situação dos indígenas. Naquele momento, a acusação era de risco de genocídio. Desta vez, porém, trata-se da primeira ação de iniciativa dos trabalhadores da saúde na Corte Internacional e já levando em consideração vetos a leis, a medidas de ajuda e sua responsabilidade de proteger tanto a população quanto aos profissionais de saúde.
O tribunal recebe cerca de 800 denúncias por ano e leva meses até tomar uma decisão se aceita ou não a queixa, o que levaria a corte a abrir uma investigação formal.
Enquanto uma decisão é aguardada, porém, a ofensiva internacional se transforma em mais um capítulo de um abalo contra o governo. Nos últimos meses, as denúncias em diferentes fóruns internacionais se transformaram no “novo normal” para a diplomacia brasileira. Apenas em 2019, foram mais de 35 queixas apresentadas formalmente à ONU.
No caso do Tribunal, porém, a denúncia vem dos sindicatos de profissionais de saúde, que consideram que existe “dolo” e “intenção na postura do presidente, quando adota medidas que ferem os direitos humanos e desprotegem a população, colocando-a em situação de risco em larga escala, especialmente os grupos étnicos vulneráveis”.
No documento de 64 páginas submetido à procuradora-geral do Tribunal, Fatou Bensouda, as entidades denunciam uma atitude de “menosprezo, descaso, negacionismo” e que “trouxe consequências desastrosas, com consequente crescimento da disseminação, total estrangulamento dos serviços de saúde, que se viu sem as mínimas condições de prestar assistência às populações, advindo disso, mortes sem mais controles”.
“A omissão do governo brasileiro caracteriza crime contra a humanidade – genocídio”, diz o texto. “É urgente a abertura de procedimento investigatório junto a esse Tribunal Penal Internacional, para evitar que, dos 210 milhões de brasileiros, uma parcela sofra as consequências desastrosas dos atos irresponsáveis do senhor Presidente da República”, apontam.
“O governo Bolsonaro deveria ser considerado culpado por sua insensível atuação frente à pandemia e por recusar-se a proteger os trabalhadores da saúde do Brasil assim como a população brasileira, à qual ele prometeu defender quando se tornou presidente”, disse Marcio Monzane, secretário regional da UNI Americas.
“Entendemos que buscar a Corte Penal Internacional é uma medida drástica, mas os brasileiros estão enfrentando uma situação extremamente difícil e perigosa criada pelas decisões deliberadas de Bolsonaro”, disse.
A UNI Americas é o braço regional da federação internacional sindical UNI Global Union, com sede na Suíça e representando 20 milhões de trabalhadores dos setores de serviços em 150 países.
Segundo Morzane, a opção dos sindicatos não foi a de fazer “mais uma pressão política”. “Decidimos apresentar uma denúncia técnica”, explicou. No documento, o grupo cita a situação entre indígenas, comunidades vulneráveis e os profissionais de saúde.
Crime contra a humanidade
Criado no final dos anos 90, o tribunal tem o mandato para avaliar quatro crimes internacionais fundamentais: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão.
“O caso descreve como Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade quando se recusou a tomar as medidas necessárias para proteger o povo brasileiro durante a pandemia, garantindo a redução dos riscos de doenças, conforme prevê o artigo 196 da Constituição Federal”, explicam as entidades.
“O presidente, argumentam os advogados na ação, colocou e ainda coloca os profissionais de saúde bem como toda a população em risco, ao promover aglomeração de seus apoiadores, aproximando-se deles sem máscara, e fazendo propaganda de medicação, como a hidroxicloroquina, para a qual não há comprovação científica de sua eficácia contra a doença”, alertam.
“Bolsonaro afirmou ele mesmo ter testado positivo para a Covid-19 e tem constantemente promovido o uso da medicação em lives em suas redes sociais, ao forjar estar tomando o medicamento”, denunciam.
Genocídio e Gilmar Mendes
Em outro trecho, a denúncia também explica os motivos pelos quais a queixa por genocídio é apresentada:
- a) intenção deliberada do Presidente da República em não adotar medidas que viesse impedir a expansão da “epidemia”, contando com o “contagio de rebanho”;
- b) temos o povo brasileiro como um “grupo”, na definição da ONU, que foi afetado pelas omissões governamentais;
- c) de forma setorizada, a omissão atingiu comunidades de negros, indígenas, quilombolas, dizimando grupos;
- d) ainda, de forma setorizada, temos como grupo, os trabalhadores da saúde, obrigados pela profissão a se exporem ao risco de contaminação que, se avolumou pela falta de políticas públicas que viessem evitar a proliferação do vírus.
O documento submetido ao Tribunal ainda cita o caso do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que indicou que “caso um agente público conscientemente adote posição contrária às recomendações técnicas da OMS, entendo que isso poderia configurar verdadeira hipótese de imperícia do gestor, apta a configurar o erro grosseiro”.
“Já manifestei — e manifesto novamente — que a Constituição Federal não autoriza ao Presidente da República ou a qualquer outro gestor público a implementação de uma política genocida na gestão da saúde”, escreveu o ministro.
No dia 11 de julho, o mesmo ministro voltou a tocar no assunto, abrindo uma crise entre o Planalto e o STF. De acordo com os documentos submetidos ao tribunal, “considerando o fato de, mais de duas dezenas de cargos técnicos no Ministério da Saúde estarem sendo ocupados por militares sem qualquer formação na área de saúde, assim (Gilmar Mendes) se manifestou:
“Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.
“Assim, por mais de uma vez, membro do Supremo Tribunal Federal, associa as políticas públicas de saúde à “genocídio”, declarou o documento enviado para Haia. A referência de Gilmar Mendes era uma das preocupações do Palácio, justamente pelo peso que o termo genocídio poderia ter vindo de um ministro da corte suprema.
A documentação submetida ao tribunal ainda aponta como o país está há mais de dois meses sem um titular na pasta da saúde, “no meio da maior crise sanitária do último século, que já ceifou mais 80 mil vidas e deixou mais de 2 milhões de pessoas doentes até o dia 23 de julho no país”.
O texto relata as disputas entre os diferentes ministros e o presidente e como o General Eduardo Pazuello “abandonou a defesa do distanciamento social mais rígido e passou a recomendar tratamentos para a covid-19 sem aval de entidades médicas e científicas, como o uso da “cloroquina e hidroxicloroquina”.
“Em agravamento, a pasta ainda perdeu técnicos com décadas de experiência no SUS e nomeou militares para cargos estratégicos”, diz o documento.
“Com a interinidade no Ministério da Saúde, o controle ao combate ao avanço da pandemia, se mostra totalmente abandonado, exigindo de governadores e prefeitos a tomada de medidas que necessariamente deveriam estar capitaneada pelo Poder Executivo. Em 53 anos, é a primeira vez que o Brasil se mostra sem ministro da Saúde efetivo”, dizem.
Enfermagem com vítimas
A queixa ainda destaca como o comportamento do governo tem custado vidas entre os profissionais de saúde.
“Há quatro meses, a Rede Sindical Brasileira UNISaúde começou a exigir uma resposta mais contundente à crise, como o fornecimento de EPIs (Equipamento de Proteção Individual) de qualidade aos profissionais de saúde, os mais atingidos durante a pandemia, e testagem aos assintomáticos, e essa reivindicação se tornou mais urgente agora. A coalizão quer que o governo brasileiro seja coibido de continuar agindo de forma tão negligente”, destacam.
Ana Paula Gonçalves Maia, técnica de enfermagem e delegada sindical do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Belo Horizonte e Região (Sindeess), espera que a denúncia no tribunal internacional dê mais atenção aos trabalhadores da saúde, especialmente aos profissionais de enfermagem. “Estamos num campo de guerra onde não sabemos se vamos viver ou morrer”, disse.
Usando os números do próprio Ministério da Saúde, entre os dias 12 a 18 de julho, 96 mil enfermeiros e técnicos/auxiliares de enfermagem estavam contaminados, sendo os mais atingidos entre os profissionais de saúde.
“O número de óbitos desses trabalhadores, no dia 24, chegava próximo de 300, conforme o Observatório da Enfermagem do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem)”, destacam.
A enfermeira Líbia Bellusci, que é vice-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro (Sindenf-RJ) e que contraiu a Covid-19 no exercício de suas funções, alerta que o governo brasileiro tem adotado uma postura de banalizar a pandemia.
“No começo, o próprio presidente disse que (a covid-19) era uma gripezinha e, depois, quando o Brasil já somava milhares de mortes, disse: ‘E daí?”, afirmou.
“A postura dele acabou inviabilizando a celeridade no processo de cuidar e de proteger os trabalhadores da saúde e a população. Só com a denúncia internacional vamos conseguir mostrar que as entidades da saúde estão unidas em favor da classe trabalhadora, pois hoje, nós, da enfermagem, lideramos o ranking de mortes de profissionais da saúde”, disse Líbia, que trabalha no Hospital Estadual Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
Sofia Rodrigues do Nascimento, diretora-presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde de Campinas e Região (Sinsaúde Campinas e Região), é outra que culpa o governo pela dimensão da crise. Segundo ela, o presidente “não deu a assistência necessária à nação”.
“Se tivesse tido a assistência antes, um acolhimento, uma providência do governo federal, a doença não teria se alastrado tanto. Hoje, os trabalhadores da saúde têm trabalhado doentes e muito preocupados com o amanhã”, afirmou.
Jhuliana Rodrigues, técnica de enfermagem e vice-presidente da mesma entidade, espera que a denúncia dê “visibilidade para o que acontece atrás das paredes dos hospitais”.
A profissional trabalha no Hospital São Vicente em Jundiaí, interior de São Paulo. Há quatro meses sem ver a filha de 11 anos, ela disse que a própria rotina no trabalho está mais desumanizada, não por culpa dos profissionais, mas do medo que eles sentem.
“É muito difícil assumir um plantão. A gente encontra os colegas e sente uma energia pesada, de muita pressão”, desabafou.
“Não há mais conversas, interação, trabalhamos com medo do outro. É muito triste trabalhar 12 horas sem ter segurança, suporte emocional. Por isso, creio que a denúncia seja uma forma de expressarmos nossas aflições e nosso lado humano, pois estamos sofrendo muito com tudo isso”, completou.
De acordo com Morzane, essa não é a primeira vez que os sindicatos se queixam. Listas de demandas já foram apresentadas ao governo e, hoje, a constatação é de que a resposta foi a “omissão”.”Bolsonaro colocou seu exército numa guerra sem equipamento e nem os armamentos necessários”, disse.
No total, a iniciativa tem o apoio de mais de 50 entidades brasileiras e estrangeiras. Além dos sindicatos do setor, a queixa é ainda assinada pela Internacional dos Serviços Públicos (ISP), a União Geral dos Trabalhadores (UGT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), e movimentos sociais.