*Giovanna Lopes
Chacina, massacre, tragédia – na gramática da desumanização completa, nenhuma palavra é suficiente. Segurança pública é um complexo de instituições e políticas públicas que atuariam no propósito da garantia do seu nome – o que aconteceu no Rio de Janeiro, foi outra coisa. Nessa altura do campeonato já é evidente que se tratou de um espetáculo mórbido para mexer nas placas tectônicas políticas e eleitorais de 2026 – no possível estreitamento dos caminhos do fascismo, Cláudio Castro empresta seu nome para assinar o fato político que devolveria a legitimidade da discussão nacional para a campo bolsonarista.
Favela não é território à parte de um município e nem está fora da jurisdição e, sobretudo, responsabilidade estatal. A favelização é consequência de uma cadeia de falências de um projeto nacional de desenvolvimento – e sua persistência e banalização evidencia a vitória ideológica da miséria moral. Celebrar a morte de dezenas de anônimos cuja identidade pressuposta é conferida através do CEP denuncia um consenso moral da criminalização da pobreza. A organização geográfica da dicotomia entre o bem e o mal autoriza a desvalorização da vida e dignidade de milhares de pessoas no Brasil.
Educação, emprego, saúde de qualidade, delegacias, políticas culturais entre outras formas nas quais o Estado materializa-se na vida das pessoas são dispositivos fundamentais para garantir a construção da cidadania, a abertura de oportunidades, o laço de confiança com o olhar estatal. A ínfima presença desses aparelhos nas comunidades periféricas já obstrui, de saída, qualquer construção bem sucedida da superação de uma condição de desamparo coletivo. Ao abrir mão da condução social das favelas, repete-se o clichê: não existe vácuo na política. Facções, organizações criminosas e milícias disputam, e continuarão disputando, a organização da reprodução social dessas comunidades – umas com mais ou menos violência, mais ou menos infiltração política, mas todas com danos gravíssimos para quem, punido pela pobreza e por uma lógica perversa de especulação imobiliária, são levados a morar às margens da cidade.
Viver em território gerido por organizações criminosas, em detrimento do Estado brasileiro, é uma realidade inaceitável que usurpa a condição de cidadania de pessoas que organizam sua vida e cotidiano ao redor de medos e ameaças. É a negligência estatal que causa milhares de vítimas obrigadas a viver em um ambiente arbitrário, na direção oposta da democracia e das garantias da Constituição Federal.
Não existe panacéia e o buraco é sempre mais embaixo. Operações policiais sangrentas enquanto única presença estatal incisiva nessas comunidades, alimentam e colocam gasolina nesse falido ciclo de violência e extorsões. Em primeiro momento, podem seduzir e, com isso, refletir aprovações em pesquisas, aumentando a sensação de segurança – mas nenhum mínimo problema sequer foi desmantelado, pelo contrário. Dessas, resultam traumas coletivos, vidas interrompidas, planos de vingança e recrudescimento da disputa e controle territorial por facções e milícias.
Há de se livrar da Lei de Talião que pauta a lógica operacional e moral da polícia no Brasil. No mesmo estado do Rio de Janeiro, o orçamento destinado à polícia civil é, no mínimo, 6 vezes menor do que a verba recebida pela polícia militar. A priorização do flagrante no lugar da investigação e da inteligência é o pecado fundamental da deficiência fundamental desse modelo de segurança pública. Operações policiais, ao invés de contarem com tecnologia e planejamento, tornam-se sinônimos ações fracassadas movidas pelo fígado: muita tragédia, nenhuma resolução efetiva de qualquer problema.
O crime deve ser punido e os criminosos – todos – responsabilizados. Isso não está sob discussão. Há, contudo, de imperar o critério ressocializador na régua dessas decisões. Seres humanos não são descartáveis – seja em sua vida ou potencial história. O encarceramento em massa brasileiro também não se mostra como uma solução: caso fosse, a terceira maior população carcerária do mundo deveria representar um país de segurança inquestionável. Não é. Ninguém fica melhor no inferno.
Atualmente, pode-se afirmar sem medo de errar: não existe no Brasil uma política de segurança pública voltada para a recuperação e ressocialização de pessoas. Há revanchismo, racismo, punitivismo e segregação. A moralidade desta fase do capitalismo e do neoliberalismo é pautada no descarte – pela morte ou pela prisão – de criminosos de colarinho azul. O que se repete na sociologia da reprodução social é um ciclo perverso que começa e termina na miséria, com mínimas, quase nulas, oportunidades de transformação – ambiental e coletiva.
Retomando, por fim, não existe milagre e essa miséria não será superada com um espetáculo. Há de se ter como horizonte comum a construção de um ciclo virtuoso que busque operacionalizar todos os andares deste edifício. Dos problemas que constroem e mantêm esse quadro de coisas, todos são urgentes. Enfrentá-los, contudo, passa necessariamente por vontade e coragem política.
*Giovanna Lopes – Mestre em Ciências Sociais pela UNESP
