Início Brasil “Nem na ditadura aconteceu isso”, diz chargista investigado

“Nem na ditadura aconteceu isso”, diz chargista investigado

Renato Aroeira estava em seu apartamento no Leblon, sentado na mesma cadeira onde tem passado a maior parte do tempo desde que se instaurou a quarentena na cidade do Rio, quando levou um susto ao ler o noticiário dessa segunda-feira, 15. Aos 66 anos, quase 50 deles dedicados à profissão de chargista, o mineiro nascido em Belo Horizonte se viu na posição de “inimigo público” pela primeira vez na vida.

Aroeira é um dos alvos do pedido de investigação protocolado na Procuradoria-Geral da República (PGR) pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça. Com aval do presidente Jair Bolsonaro, o ministro solicitou, com base na Lei de Segurança Nacional, a abertura de um inquérito sobre uma postagem do jornalista Ricardo Noblat, que compartilhava uma charge sobre Bolsonaro. O autor: o próprio Aroeira.

“Fiquei muito tenso, porque apesar de já ter sido processado, é a primeira vez que sou questionado pelo Estado. Nem na ditadura militar isso aconteceu. Até então, eu tive processos partindo de personalidades, autoridades, governadores… o escambau. Mas é a primeira vez que viro inimigo público. Isso me deixou angustiado e nervoso.”

Apesar do receio de potencialmente virar alvo de uma ação criminal movida pelo Estado, o cartunista faz piada da possibilidade de ser considerado um ‘terrorista’ por ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional.

“Eu sou mais um aterrorizado que um terrorista. Eu sou um cara que está apavorado com a inconsequência desse pessoal do governo. Sou um sujeito que está tenso com a abertura (das medidas de isolamento), quando não era isso que a gente tinha que fazer. Eu fico atônito quando vem o presidente falar que precisa invadir hospital! É difícil a gente não ficar indignado”, disse.

A charge em questão mostra uma cruz vermelha, símbolo universal para serviços de saúde, com as pontas pintadas de preto, formando uma suástica nazista. Ao lado, uma caricatura de Bolsonaro segura uma lata de tinta preta, e diz: “Bora invadir outro?”. A sátira foi publicada após o presidente sugerir, durante uma live, que seus apoiadores entrassem em hospitais de campanha e filmassem a situação encontrada.

“Pode ser que eu esteja equivocado, mas na totalidade ou em grande parte ninguém perdeu a vida por falta de respirador ou leito de UTI. Pode ser que tenha acontecido um caso ou outro. Seria bom você, na ponta da linha, tem um hospital de campanha aí perto de você, um hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente tá fazendo isso, mas mais gente tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não”, sugeriu Bolsonaro na semana passada.

Após a fala do presidente ao menos dois hospitais foram ‘invadidos’ por bolsonaristas, o que gerou a abertura de um inquérito por solicitação do procurador-geral da República, Augusto Aras.

#SomosTodosAroeira

Pouco tempo depois do anúncio do ministro da Justiça sobre o pedido de investigação contra Aroeira, uma rede de solidariedade se formou ao redor do chargista. Companheiros de profissão, músicos e escritores lançaram a campanha #SomosTodosAroeira nas redes sociais e fizeram um abaixo assinado virtual que conseguiu mais de 10 mil assinaturas até o começo da tarde desta terça-feira.

“A solidariedade dos meus amigos me deixou muito feliz, a ponto de dar taquicardia e eu ter que tomar água com açúcar”, contou. “Embora eu seja uma ‘puta velha’ em relação a processos, esse será o meu quinto – ou melhor, seria, porque eu espero que não chegue a tanto -, eu preferia que nada disso tivesse acontecido. Nos quatro anteriores, eu perdi dois e ganhei um e meio.”

O “meio” processo vencido, citado pelo chargista, foi movido pelo então deputado Jair Bolsonaro. O então candidato à Presidência não gostou de uma outra charge, em que sua caricatura aparecia rolando morro abaixo, com seus membros formando o símbolo nazista a cada giro.

“Eu digo que ganhei meio processo, porque foi só a primeira instância (risos). Mas ganhei com uma sentença exemplar. Ele me processou alegando ‘grande angústia moral por ter sido ofendido, calúnia e etc’. A juíza disse, na sentença, que uma pessoa que posa com um sósia do Hitler não pode se sentir moralmente indignado e angustiado com a charge”, relatou.

Apesar de admitir que considera o governo Bolsonaro desastroso, o trabalho de Aroeira não se limita a Bolsonaro ou a personagens da direita. Cartunista e chargista desde os 17 anos, suas sátiras já tiveram como alvo figuras como Lula, Dilma e outros. “É parte do meu trabalho.” Alguns dos mais recentes, compartilhados nas suas redes sociais, incluem o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump; o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; o líder pedetista Ciro Gomes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Sem uma investigação propriamente aberta e muito menos um processo para encarar até aqui, o chargista avalia o movimento do governo como um “tiro no pé”. “É um trem doido, como se diz lá em Minas. Poxa, o cara conseguiu fazer com que essa charge fosse vista por mil vezes mais pessoas do que ela seria em uma condição normal. Eles acabaram atraindo atenção mundial para a fala do sujeito mandando invadir hospital.”

“Eu preferia que nada disso tivesse acontecido. Mas como aconteceu, é bobagem achar que eu vou renunciar à charge. Já bolei até a continuação. Ainda mais esse movimento de chargistas que está se formando. Vários colegas estão desenhando a minha charge. A mesma composição, cada um com seu traço. E agora? A Secom, que eu estou chamando de SeCen (Secretaria de Censura), vai processar mais 40 chargistas?.”

Fato político grave

Para o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Floriano Marques, a ação do presidente contra o chargista, usando a Lei de Segurança Nacional e o ministro da Justiça, é um fato político grave. De acordo com doutor em direito administrativo, Bolsonaro teria todo o direito de processar o chargista caso se sentisse ofendido com a sátira, no entanto, se aproxima de uma ação do Estado contra a liberdade de imprensa.

“Não é que o chargista ou o jornalista tenha salvo conduto para dizer o que bem entende livremente. Se o presidente Bolsonaro tivesse entrado com uma ação de indenização por perdas e danos, com seu advogado, eu diria que ele está em pleno exercício do seu direito. Mas usar a máquina do estado, citando uma lei como a Lei de Segurança Nacional – que existe para proteger as instituições, e não indivíduos – com o ministro solicitando isso, aproxima-se de uma ação de Estado contra a liberdade de imprensa, o que pode ser jurídica e politicamente grave”, afirma o professor.

Marques descartou qualquer possibilidade de condenação por calúnia, por não ver configurado qualquer ato criminoso imputado pela charge ao presidente. Ele também considera que não houve difamação. A difamação, que poderia ser enquadrada pela lei de segurança nacional ou pelo código penal, seria teoricamente possível. Mas mesmo assim, no caso da charge, eu acho que não está nada além da crítica política. Uma charge que imputa uma de alguém exposto politicamente, em cargo público, com ideários que se aproximam do ideário nazista. Não acho que seja uma difamação, porque se assim considerarmos, qualquer ‘meme’ na internet imputaria crime de difamação.

Marques lembrou ainda que, caso a charge de Aroeira seja enquadrada na Lei de Segurança Nacional, o mesmo pode ser feito com a declaração do ministro Celso de Mello, que fez comparações entre o governo de Bolsonaro no Brasil e o governo de Hitler na Alemanha nazista.

Redação

Sair da versão mobile