Dados preliminares de um estudo conduzido no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) indicam que a variante brasileira do novo coronavírus – denominada P.1. – já é a predominante em Araraquara. O município está com 100% de ocupação em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e vem registrando desde fevereiro recordes de novos casos, internações e mortes por COVID-19.
Os pesquisadores analisaram 57 amostras de secreção nasofaríngea coletadas de pacientes que tiveram o diagnóstico confirmado entre os dias 25 de janeiro e 23 de fevereiro de 2021 em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) local. Em 93% dos casos, os teses revelaram a presença da nova cepa, considerada cerca de duas vezes mais transmissível que sua predecessora (linhagem B.1.128).
“Até 17 de fevereiro ainda encontramos alguns casos de infecção por outras linhagens. A partir daí foi tudo P.1.”, conta à Agência FAPESP Camila Romano, coordenadora da investigação.
O trabalho integra um projeto apoiado pela FAPESP, cujo objetivo é avaliar a transmissão domiciliar do SARS-CoV-2 em Araraquara. Assim que a P.1. foi detectada na cidade e o sistema de saúde local começou a dar sinais de colapso, o grupo do IMT-USP entrou em contato com colaboradores para obter amostras de moradores e tentar medir a prevalência da nova variante.
As primeiras análises foram feitas com material de 22 pacientes hospitalizados. “Como eles já estavam internados há muitos dias, a expectativa era de que a carga viral no organismo seria muito baixa e, portanto, difícil de analisar. Mas, para nossa surpresa, conseguimos sequenciar o RNA do vírus em 14 amostras, das quais 12 deram positivo para a P.1.”, afirma Romano.
O passo seguinte foi avaliar as amostras da comunidade, ou seja, de pessoas atendidas em UBS e que não necessariamente apresentam comorbidades ou evoluem para casos graves – o que permitiria obter um retrato mais representativo da população araraquarense.
Para tornar o processo de análise mais rápido e barato, o grupo do IMT-USP desenvolveu uma metodologia que dispensa o sequenciamento do genoma viral.
“Desenhamos um novo ensaio de RT-PCR, similar ao que é usado para diagnóstico, mas capaz de diferenciar quais casos positivos de COVID-19 estão relacionados à linhagem P.1.”, explica Romano.
Segundo a pesquisadora, essa estratégia foi possível porque a variante brasileira apresenta, em um gene denominado NSP6, uma mutação-chave similar à observada nas variantes mais transmissíveis detectadas no Reino Unido (B.1.1.7) e na África do Sul (B.1.351). Esse gene codifica uma proteína que participa dos processos de replicação viral e a mutação é caracterizada pela deleção de três aminoácidos, ou seja, pela perda de nove nucleotídeos.
“Acrescentamos ao protocolo do RT-PCR mais um primer [segmento de ácidos nucleicos complementar ao material genético que se deseja estudar] que só ‘acende’ quando essa mutação no gene NSP6 está presente”, explica.
Vantagem adaptativa
Estudos que avaliaram o processo evolutivo do SARS-CoV-2 sugerem que a mutação no gene NSP6 (codificador da proteína não estrutural 6) surgiu paralelamente nas variantes P.1., B.1.1.7 e B.1.351, embora não estivesse presente no ancestral comum às três cepas.
“Essa e outras mutações na proteína spike [que se liga ao receptor da célula humana para viabilizar a infecção] parecem conferir uma importante vantagem adaptativa ao vírus, que agora consegue se disseminar ainda melhor. Nas cidades em que a P.1. já foi detectada estamos observando uma significativa mudança de comportamento da epidemia”, diz Romano.
Estudo recentemente divulgado por pesquisadores do Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE) – que também colaboram neste estudo coordenado por Romano – indica que a variante brasileira emergiu em novembro de 2020 e em apenas sete semanas se tornou a mais prevalente na cidade de Manaus, no Amazonas (leia mais em agencia.fapesp.br/35290).
“Ainda não sabemos quando exatamente a P.1. entrou em Araraquara e estamos analisando amostras mais antigas para tentar descobrir. Mas os dados que temos até agora sugerem que também nessa cidade ela se tornou a mais prevalente em menos de dois meses”, afirma Romano. “É incomum uma linhagem emergente substituir completamente outra já estabelecida em tão pouco tempo, ainda mais quando há um foco epidêmico ativo e um grande número de indivíduos já infectados. É assustador e mostra o poder desse vírus.”