Na história da medicina, poucas descobertas foram tão transformadoras quanto as que surgiram de espécies da natureza. Só destacando alguns que mudaram a saúde humana no planeta: a morfina, extraída da papoula, revolucionou o tratamento da dor e até hoje este alcaloide e seus derivados são utilizados; a vinblastina ou vimblastina, retirada da flor tropical Catharanthus roseus, se tornou uma das armas mais eficazes contra o câncer; o paclitaxel, oriundo do teixo americano, é até hoje essencial no combate ao câncer de mama e ovário. Essas são alguns exemplos de descobertas de fármacos oriundos da biodiversidade terrestre. Muitas outras, podiam ser citadas, mas neste texto vale citar a artemisinina e derivados para tratamento de malária, o captopril, uma engenhosidade da química medicinal, usada para hipertensão. O epidiolex (epilepsia) medicamento que contém o canabidiol (CBD) isolado da planta Cannabis sativa, e aprovado pela FDA (Food and Drug Administration-USA) em 25 de junho de 2018, surgiu como uma esperança para o tratamento de convulsões associadas a síndromes neurológicas específicas (Lennox-Gastaut e Dravet), e esclerose tuberosa em pacientes a partir de 1 ano de idade. Todos esses exemplos têm algo em comum: são produtos naturais que mudaram o curso da saúde pública global e todos foram descobertos fora do Brasil.
Há aqui um paradoxo. O Brasil, que detém cerca de 20% da biodiversidade do planeta, com biomas únicos como a Floresta Amazônica, o Cerrado, a Caatinga, a Mata Atlântica, o Pantanal e Pampas, ainda transforma muito pouco dessa riqueza biológica em ciência, tecnologia, inovação (fármacos sintéticos, semissintéticos e/ou produto natural) em benefícios para a população. Nosso território é um verdadeiro “laboratório vivo”, com centenas de produtos naturais de classes e funções as mais variadas, cuja mente humana jamais conseguiria imaginar! No entanto, seguimos como exportadores de matéria-prima bruta e importadores de conhecimento e tecnologia no setor de fármacos e medicamentos.
A Amazônia continua sendo uma farmácia natural ainda pouco explorada e atualmente submetida a derrubada de árvores de lei, um exemplo é a espécie Chimarrhis turbinata pertence à família Rubiaceae. Esta espécie foi estudada no Instituto de Química (IQ) da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Araraquara, mostrando-se uma fonte inesgotável de substâncias antioxidantes, que justifica bem o uso indígena para embelezamento da pele. A Floresta Amazônica é lar de dezenas de milhares de espécies vegetais, muitas com uso tradicional consolidado por populações indígenas e comunidades locais. Casos como o da Uncaria tomentosa (unha-de-gato), usada como anti-inflamatório, ou do veneno da jararaca (Bothrops jararaca), que inspirou o desenvolvimento do captopril, já mencionado no texto, é um inibidor da enzima conversora de angiotensina (ECA), usado para o tratamento de hipertensão e alguns tipos de insuficiência cardíaca congestiva, reconhecido mundialmente.
Os poucos exemplos destacados neste texto mostram o reconhecimento mundial da riqueza molecular das espécies da nossa biodiversidade, algumas com conhecimento tradicional e investigações com base nos avanços das ciências biológicas, químicas e farmacológicas. Com base nos produtos naturais oriundos da riqueza molecular das espécies dos biomas brasileiros o país tem uma base de conhecimento sobre os produtos naturais que poderiam impactar setores globais como o farmacêutico, de cosmético, suplementos alimentares e agroquímicos. Diante deste imenso potencial, estima-se que menos de 10% das espécies da flora brasileira tenha sido estudada sob a perspectiva química e farmacológica visando bioprodutos de alto valor agregado. Isso revela uma excelente oportunidade, mas releva também uma omissão histórica.
Conhecimento que se perde, riquezas que vão embora! Escassa articulação entre ciência e setor produtivo alimentam um ciclo vicioso. Enquanto isso, pesquisadores e empresas estrangeiras continuam avançando — muitas vezes valendo-se do que chamamos de biopirataria, quando compostos isolados de espécies coletadas nos biomas brasileiros são patenteados no exterior sem retorno justo ao país de origem. Hora de se mudar o jogo? Transformar biodiversidade em valor — seja na forma de medicamentos, cosméticos, alimentos ou novos materiais — é uma estratégia de soberania nacional, saúde pública e desenvolvimento sustentável. O
Brasil pode ser líder mundial em bioinovação. Temos conhecimento, temos diversidade, temos histórias de sucesso. O que falta é decisão política e visão estratégica. Estamos sentados sobre um dos maiores tesouros da Terra. A pergunta que se impõe é: vamos, mais uma vez, deixá-lo escapar? A aprovação do PL 2159/2021 mostra total desconhecimento do valor econômico da riqueza molecular incalculável dos nossos biomas.
*O artigo expressa exclusivamente a opinião da autora