O SESC Araraquara sediou, na noite da última sexta-feira (24), o lançamento oficial do livro “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”, obra que reúne um raro conteúdo composto por documentos, fotos e informações sobre o período da escravização na cidade. A solenidade, que teve início com uma apresentação do Grupo Ilú Oba de Min, de São Paulo, contou com transmissão ao vivo pela página da Prefeitura no Facebook, onde o vídeo se encontra disponível para visualização.
O livro reúne mais de 500 páginas digitalizadas de escrituras de compra e venda de escravizados em Araraquara no final do século 19, entre os anos de 1874 e 1887, que estavam arquivadas em cartório. Em 1890, pouco tempo após a abolição, o então Ministro de Estado, Rui Barbosa, determinou que fossem queimados todos os documentos relacionados à escravização no Brasil, restando poucas cidades que mantiveram os livros dos tabelionatos intactos, contrariando sua ordem. Após inúmeras tentativas e mediante autorização do Juiz-Corregedor Permanente do 1º Tabelião de Araraquara, as cópias digitalizadas dessas escrituras foram liberadas para a 5ª Subseção da OAB/SP e sua Comissão de Combate à Discriminação Racial.
O prefeito Edinho valorizou o conteúdo da pesquisa disponibilizada no livro e afirmou que recuperar a história é o primeiro passo para que a justiça seja feita. “Eu sabia que esse seria um momento carregado de emoção por tudo o que ele representa. Historicamente ele tem muita representatividade. Talvez o Rui Barbosa tenha sido movido por um sentimento de que o Brasil, após o fim da escravidão, fosse um país que não tivesse acertos de contas por conta da escravidão. Certamente ele se moveu para que houvesse uma preservação das relações que se estabeleceram no período da escravidão, mas a história é maior que os atos e que as intenções. Quando há a destruição de documentos para que uma página ou páginas de um período da história desapareçam no que diz respeito aos seus atores, isso pode preservar os opressores, mas gera mais um ato de violência com os oprimidos. Quando você tenta apagar da história algo que jamais se apagará, você nega o direito à justiça”, destacou.
O prefeito falou também da importância de outras cidades seguirem o exemplo do que foi feito em Araraquara. “Eu não sei o desdobramento disso que Araraquara faz hoje. Não sei porque vai depender dos atores. A história está aí para ser construída, mas nós tiramos a tampa do tacho. Nós criamos um precedente e esperamos que outras cidades façam o mesmo. E que possamos entender que a escravidão tinha nome, tinha gênero, tinha dor, tinha sofrimento, tinha sentimento de justiça que nunca se cumpriu, Se ainda hoje 2% da representatividade política do Brasil é de mulheres negras, efetivamente essa justiça nunca se deu. Estamos no século 21 e a justiça nunca se deu”, concluiu.
A deputada estadual Thainara Faria (PT) também falou sobre o reflexo da escravização na estrutura da sociedade atual. “O que nós passamos, o que nós temos passado e o que nós defendemos na sociedade para que os nossos que virão depois não passem, é muito sério. Foram 338 anos de escravização. O Brasil foi o último país da América Latina a abolir esse terror. Qualquer política pública que não dialogue com a realidade do nosso país não nos serve”, disse a parlamentar.
O vereador João Clemente (PSDB) falou em nome de toda a Câmara Municipal de Araraquara. “Se é possível fazermos um resgate da história desses homens e mulheres que estão nesse livro, nós somos prova de que quando nos dão oportunidade, de que quando dão espaço e de que quando construímos os nossos caminhos, nós damos certo. E mais, trazemos todos que estão à nossa volta para fazer também com que a suas histórias pessoais sejam transformadas, porque se tem uma coisa que o negro faz com primor é trilhar caminhos para que o próximo possa chegar também”, valorizou.
A coordenadora de Políticas Étnico-Raciais, Alessandra Laurindo, agradeceu a todos que participaram do projeto, destacou que nas páginas do livro não serão encontrados nomes de personagens fictícios nem de cenários imaginários, mas sim fatos reais da história. “De um lado, pessoas que foram acometidas por um dos crimes mais bárbaros de toda a humanidade no Brasil, perdurada por 388 anos, que foram escravizadas e também esquecidas, e do outro lado pessoas que compraram e possivelmente torturaram , açoitaram e hoje podem ser lembradas, pois são homenageadas em próprios públicos, como infelizmente tornou-se cultural na construção do país homenagear personalidades que estiveram diretamente ligadas à escravização e precarização na vida de negros e indígenas”, salientou. Para ela, a obra marca uma nova fase da luta contra o racismo. “Os enfrentamentos são diários, mas acredito que caminhamos muito e, após o lançamento deste livro, teremos o reconhecimento e a valorização de pessoas que realmente merecem uma visibilidade ainda maior, que sofreram na pele, na carne, todas as violências vividas pelos escravizados, mas que também lutaram, de forma organizada ou não, para que pudéssemos hoje estar aqui dando sequência a esse legado”, completou.
Felipe Oliveira, presidente da OAB Araraquara 5ª Subseção, chamou ao palco os outros membros da OAB Araraquara e passou a palavra para Camila Claudino, secretária adjunta e membro da Comissão de Combate à Discriminação Racial da OAB Araraquara, que se emocionou ao citar trechos encontrados pelo pai, Cláudio Claudino, vice-presidente da mesma comissão, durante a pesquisa para a construção do livro. “Recentemente descobrimos que minha bisavó foi escrava. Infelizmente estamos com muitas dificuldades em conseguir mais documentos. Talvez tenham sido todos aniquilados. Portanto, o que se conquista nesta data não é a simples história de um livro, de um museu ou de biblioteca, mas são histórias de pessoas, de famílias, de ancestralidade. São árvores genealógicas, são sangue e raiz”, disse a advogada.
A representante da OAB São Paulo, Rosana Rufino, afirmou que a obra reforça a importância de olhar para aquele momento histórico sob a ótica da justiça de transição que foi negada ao povo escravizado. “O Brasil é a maior diáspora africana do mundo, o país que por mais tempo, em maior quantidade, escravizou, sequestrou, humilhou, mutilou, açoitou e violentou pessoas negras, explorou sua mão de obra, pela tecnologia que dominava nossos ancestrais, a tecnologia para a agricultura, mineração, para a ciência e para a medicina, e que foi responsável pela construção dessa sociedade tal qual nós conhecemos. Hoje damos um grande passo, descortinando esses processos de escravização, para comprovar como essa herança escravocrata até hoje influencia a realidade das pessoas negras neste país”, mencionou.
A superintendente de Comunicação do SESC São Paulo, Áurea Vieira, destacou que a obra fortalece a ideia de que é preciso enfrentar temas difíceis da história brasileira. “A escravidão é mácula vexatória e fundamental para entender a história do Brasil. Nenhum país do mundo experimentou o flagelo da escravização de africanos, africanas e seus descendentes na proporção que o nosso país vivenciou, estendendo-a por um tempo infame. Além da magnitude desse terrível fenômeno, temos que levar em conta como ele se embrenhou na estrutura da sociedade brasileira. É nesse sentido que devemos, a todo tempo, apontar que o racismo, herança principal da política escravagista, é infelizmente um vetor estrutural de nossa experiência de mundo”, comentou.
O presidente do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, Gil Clarindo dos Santos, citou dados sobre crimes de racismo no Brasil e ressaltou a necessidade de uma presença maior da comunidade negra nas composições políticas. “É importante dizer que a questão do crime racial, da ofensa racial, não é só da população negra. Nós precisamos estar cientes e conscientes e lutarmos para que tenhamos uma participação melhor dentro do empreendedorismo, dentro das secretarias, e que tenhamos uma diversidade maior e uma transversalidade maior nos cargos de confiança do estado, dos municípios”, pontuou.
O representante da Uniara e da Academia Araraquarense de Letras, Fernando Passos, chamou ao palco o professor Edmundo Alves de Oliveira, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Uniara, que falou da importância do projeto. “Muito do que nós produzimos neste livro abre também para muitas outras questões. Por que esses textos sobreviveram? Quais são as pessoas que estão lá? Quais são as pessoas descendentes daquelas que estão lá? Tudo isso são perguntas, perguntas acadêmicas e perguntas para quem está pensando a cidadania, para quem quer realmente ser antirrascista e questões que nos obrigam a continuarmos juntos”, destacou Edmundo.
O evento contou ainda com a participação do historiador e professor Douglas Belchior, que atua principalmente em questões de direitos humanos e direitos sociais, com ênfase no combate ao racismo e nos movimentos negros. Ele denominou o livro como um “instrumento de luta radical” e afirmou que acredita que nenhuma outra cidade do Brasil tenha um documento dessa profundidade, de maneira tão efetiva. “Os cartórios serviam de espaço para garantia dos interesses privados e muitos documentos podem ter sido guardados como o que aconteceu aqui. Esse país está, ainda hoje, privado de provas reais, jurídicas, documentadas, do maior crime de lesa-humanidade da história do planeta, que foi a escravidão que durou quase 400 anos no Brasil. Nós nunca temos noção do tamanho do momento histórico que estamos vivendo. Eu não tenho nenhuma dúvida de que o que estamos vendo aqui vai demarcar um outro momento”, assegurou o ativista, que é um dos fundadores do cursinho popular XI de Agosto, situado na Zona Leste da região metropolitana de São Paulo, que mais tarde veio a se articular e formar a rede de cursinhos do movimento social UNEafro Brasil.
Também participaram da solenidade o coordenador geral do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra da Fundação Cultural Palmares, Guilherme Bruno dos Santos, que representou a ministra de Estado da Cultura, Margareth Menezes; a chefe de gabinete da Secretaria Nacional de Justiça, Dra. Lázara Carvalho; Isabele Lupino, que representou a deputada estadual Márcia Lia; Rafael Barcot, gerente do SESC Araraquara; o secretário municipal de Direitos Humanos e Participação Popular, Marcelo Mazeta, que representou todos os secretários municipais presentes; a vice-presidente da OAB Araraquara, Clara Alvarenga; o presidente da Comissão de Combate à Discriminação Racial da OAB Araraquara, Walle Camargo; o tesoureiro da OAB Araraquara, Paulo Malara; a vice-presidente da Comissão da Verdade da OAB São Paulo, dra. Lenny Blue; entre outras personalidades militantes da causa antirracista.
O livro
O projeto é realizado pela Prefeitura de Araraquara, por meio do Centro de Referência Afro “Mestre Jorge”, e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Araraquara – 5ª Subseção, contando com o apoio do Sesc, do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB) da Uniara, da Academia Araraquarense de Letras, do NUPE- Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa em Extensão, da Comissão de Combate à Discriminação Racial da OAB e da Frente Parlamentar Antirracista. A obra, que conta com a organização de Alessandra Laurindo, Claudio Claudino, Edmundo Oliveira, Felipe Oliveira e Fernando Passos, traz prefácios de instituições e pessoas comprometidas com o combate ao racismo, como o diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda; o professor Dr. da Unesp Araraquara, Dagoberto José Fonseca; além do Conselho Municipal de Combate à Discriminação e ao Racismo, Defensoria Pública, Fórum Trabalhista de Araraquara e outras organizações.
A publicação desse conteúdo foi autorizada pelo Juiz-Corregedor Permanente da Serventia Extrajudicial e expõe a realidade sobre a época da escravatura no Brasil e a realização de estudos sobre o período, além de possibilitar que descendentes de escravizados tenham acesso à verdade sobre as histórias de suas famílias. A inclusão dos prefácios, por sua vez, permite que as entidades e pessoas envolvidas com a temática manifestem, sob sua ótica, a importância do livro na luta contra o racismo.
O download do livro “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense” já está disponível no site da Prefeitura de Araraquara (www.araraquara.sp.gov.br).