Morreu nesta sexta-feira (23), aos 81 anos, o fotógrafo Sebastião Salgado. Conhecido por seu trabalho documental e sua assinatura visual em preto e branco, recebeu praticamente todos os principais prêmios de fotografia do mundo. A informação da morte foi confirmada por uma fonte próxima da família.
Em um comunicado enviado à AFP, sua família informou que “ele contraiu uma forma particular de malária em 2010, na Indonésia, no âmbito do projeto Gênesis. Quinze anos depois, as complicações desta doença resultaram em uma leucemia severa, que acabou por vencê-lo.
Nascido na vila de Conceição do Capim, em Minas Gerais, em 1944, Salgado transformou o fotojornalismo. Seu registro das injustiças sociais e das populações marginalizadas atravessou fronteiras, mostrando a realidade de trabalhadores rurais, refugiados, povos originários e territórios em risco. Seu estilo inconfundível unia emoção, reflexão e forte apelo estético, lirismo e denúncia, sempre com domínio da luz natural, o contraste marcante do preto e branco e uma composição inspirada.
Salgado estava com uma exposição em cartaz na França. A mostra organizada no centro Les Franciscaines, em Deauville, reúne mais de 400 obras dele, todas do acervo do Maison Européenne de la Photographie. A exposição segue em cartaz até 1º de junho. Em entrevista à Forbes, publicada nesta quinta-feira (22), o fotógrafo falou que a exposição em Deauville era “um passeio” por sua própria vida.
Além disso, a partir da próxima sexta (30), a Casa Firjan, em Botafogo, recebe a exposição “Trabalhadores”, com 149 fotografias do artista que retratam as diferentes faces do trabalho ao redor do mundo. Com curadoria da esposa do fotógrafo, Lélia Wanick Salgado, a mostra ressalta o olhar sensível do fotojornalista sobre variados tipos de trabalho manual.
‘Amor pela humanidade’
“Sebastião foi muito mais do que um dos maiores fotógrafos de nosso tempo”, afirmou em nota o perfil oficial do Instituto Terra, uma ONG de educação ecossistêmica fundada pelo próprio Salgado e por sua esposa, Lélia Wanick. “Ao lado de sua companheira de vida, Lélia Deluiz Wanick Salgado, semeou esperança onde havia devastação e fez florescer a ideia de que a restauração ambiental é também um gesto profundo de amor pela humanidade. Sua lente revelou o mundo e suas contradições; sua vida, o poder da ação transformadora”.
ormado em economia, com mestrado na Universidade de São Paulo e na Sorbonne, Salgado realizou as suas primeiras sessões de foto com uma Leica em viagens a trabalho pela África. Três anos depois, decidido a se dedicar exclusivamente à sua paixão, abandonou seu cargo de secretário da Organização Internacional do Café e se especializou como fotojornalista independente.
Início na Magnum
Com base em Paris, ele trabalhou para agências de fotografia de prestígio como Sygma e Gamma, antes de entrar para a Magnum. Quando Salgado cobria a guerra de independência de Moçambique, o carro que o transportava foi atingido por uma mina terrestre. Após o acidente, o fotojornalista sofreu com dores crônicas na coluna durante 50 anos. Além desta enfermidade, teve que lidar com um distúrbio sanguíneo causado por malária mal tratada na Indonésia.
Em 1981, outro incidente mudou a vida do fotógrafo. Salgado cobria os 100 primeiros dias do governo Ronald Reagan quando o presidente americano foi vítima de um atentado a tiros em Washington. As imagens feitas por Salgado viajaram o mundo e, com o dinheiro da venda para os jornais, ele pôde financiar uma viagem à África, onde produziria o seu primeiro projeto autoral.
Seu primeiro livro, “Outras Américas”, de 1986, marcou um retorno às suas origens, documentando a paisagem geográfica e humana de cidades do litoral brasileiro e de países como Bolívia, Chile, Peru, Equador, Guatemala e México. “Meu único desejo era voltar à minha terra bem-amada, para meu Brasil do qual um exílio um pouco forçado me obrigou a me afastar”, disse o fotógrafo na época. Reunindo um trabalho fotográfico entre 1977 e 1983, a obra mostra as condições de vida dos camponeses e a resistência cultural dos indígenas latino-americanos.
Em 1994, Salgado voltou a fixar residência em Paris com sua esposa, Lélia. Para representar seu trabalho e garantir controle da sua obra, o casal fundou a sua própria agência de notícias, As Imagens da Amazônia, que também funcionava como uma espécie de ateliê curatorial. Longe das pressões comerciais, montou uma estrutura necessária para seus próximos projetos, que resultaram nos livros “Trabalhadores”, “Terra”, “Êxodos”, “Gênesis” e “Amazônia”.
“Terra”, de 1997, tem como ponto central o drama dos trabalhadores rurais sem-terra nos embates pela reforma agrária. O fotógrafo registra os acampamentos, os assentamentos e as ocupações realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Além do livro, que traz prefácio do Nobel de Literatura José Saramago, o projeto conta ainda com um álbum homônimo de Chico Buarque.
Lançado em 2000, o monumental “Êxodos” é fruto de seis anos de pesquisa sobre os movimentos migratórios do final do século XX e o desalojamento em massa forçado por guerras, perseguições, fome, miséria ou desastres ambientais. Aclamada internacionalmente, a obra contribuiu para o debate público sobre os efeitos da globalização nos direitos humanos e desigualdade global.
Entre florestas e geleiras
Outro ambicioso projeto, “Gênesis” revela a beleza, fragilidade e resiliência de mais de 30 regiões remotas do planeta. Salgado afirmou na época que a natureza estava “falando” com sua câmera, que registrou florestas, geleiras, desertos e outros ecossistemas ameaçados pelas mudanças climáticas. Retratou ainda animais em extinção e povos originários que vivem em equilíbrio com seus ambientes.
Publicado em 2021, após sete anos de expedições pela maior floresta tropical do planeta, “Amazônia” é uma defesa da preservação ambiental e dos povos originários da região. As 200 imagens em preto e branco retratam a vida e a cultura ancestral dos povos indígenas da Amazônia brasileira.
O projeto ganhou uma exposição itinerante de grande porte, apresentada em museus como a Philharmonie de Paris, o Museu do Amanhã (Rio) e o Sesc Pompeia (São Paulo), com trilha sonora criada pelo compositor francês Jean-Michel Jarre, baseada em sons da floresta e cânticos indígenas.
A consciência ambiental mostrada no livro foi adquirida na prática. Em 1998, ao lado da mulher, Lélia, ele criou o Instituto Terra para recuperar a Bacia do Rio Doce, região entre Minas Gerais e o Espírito Santo castigada pelo desmatamento.
O Instituto Terra já plantou mais de 2 milhões de árvore na Mata Atlântica e recuperou cerca de 2,5 mil nascentes nos últimos anos. Em 2024 foi anunciado que outras 4 mil estariam incluídas na nova fase do programa Olhos D’Água. O Instituto Terra também promove o desenvolvimento rural sustentável na região da Bacia do Rio Doce.
“Nós hoje trabalhamos em um projeto imenso, talvez o maior projeto de águas do planeta. Estamos recuperando milhares de nascentes e, para você recuperar uma nascente, você tem que plantar uma microfloresta de mais ou menos 500 árvores”, disse o fotógrafo, destacando o bem que trabalhar para a natureza lhe fez. “Quando comecei aqui, eu vinha doente de reportagens duríssimas que eu fiz na África. Meu corpo estava morrendo e essa terra me curou. É algo assim que te dá um prazer de lavar a alma”, afirmou.
Na lista do New York Times
Em 2024, Salgado teve uma de suas imagens incluída na lista das 25 fotografias que definem a era moderna, de acordo com o New York Times. A seleção reúne registros feitos em diversas partes do mundo desde 1955. A fotografia de Salgado escolhida pelo jornal americano retrata operários em atividade num garimpo da Serra Pelada, no sudeste do estado do Pará. O clique foi feito em 1986.
“Um dos aspectos mais marcantes das fotografias de Sebastião Salgado de uma mina de ouro a céu aberto no Brasil é a escala”, afirmou o jornal americano. “Milhares de homens —seus corpos curvados e frágeis— são representados em miniatura contra o plano de fundo de uma enorme cova na terra.”
Em entrevista à AFP em abril de 2024, quando inaugurava retrospectiva dos 50 anos de carreira em exposição na Somerset House, em Londres, o fotógrafo Sebastião Salgado comentou sobre aquele seu momento de vida:
— Só me falta morrer agora. Tenho 50 anos de carreira e completei 80 anos. Estou mais perto da morte do que de outra coisa. Uma pessoa vive no máximo 90 anos. Então, não estou longe, mas continuo fotografando, continuo trabalhando, continuo fazendo as coisas da mesma forma. Não tenho nenhuma preocupação nem nenhuma pretensão de como serei lembrado. É minha vida que está nas fotos e nada mais — explicou na ocasião o fotógrafo.
Histórias de amor
Salgado era casado há 61 anos com a arquiteta e ambientalista Lélia Wanick Salgado, de 78 anos, uma parceria de vida e muitos trabalhos, uma vez que era ela a responsável por editar as publicações e organizar as exposições do marido pelo mundo.
O casal teve dois filhos, o cineasta Juliano, de 51 anos, e o pintor Rodrigo, de 45. O caçula nasceu com síndrome de Down e desenvolveu uma paixão pela pintura. Uma exposição de suas obras está sendo realizada em Reims, 130 km a leste de Paris, com curadoria da mãe. A igreja Sacré-Coeur de Reims, inclusive, traz vitrais concebidos por Rodrigo, que aprendeu a pintar em acrílico, no ateliê do pintor francês Michel Granger, um amigo da família.
Já o filho mais velho, Juliano Ribeiro Salgado, dirigiu ao lado de Wim Wenders o documentário “O sal da Terra”, venceu o prêmio César de melhor documentário e levou o prêmio do júri na seção Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, além de ter sido indicado ao Oscar em 2015.
O documentário intercala uma entrevista que Wenders faz com Sebastião com imagens captadas por Juliano em viagens de trabalho com o pai. Entre as fotos monocromáticas que flagram a miséria humana, surgem duas histórias de amor: a familiar e a pela terra. As longas viagens do fotógrafo pelo mundo fizeram com que a relação entre pai e filho fosse distante. Ao menos até 2009, quando Sebastião convidou Juliano para uma viagem até a tribo indígena da etnia Zoé, localizada no interior do município de Óbidos, oeste do Pará.
— Eu tinha medo de acompanhar meu pai, mas ele insistiu. E essa viagem serviu para nos reaproximar. Quando ele viu as imagens que eu tinha capturado, se emocionou. Aí tive a ideia de fazer o documentário. Wim (Wenders) , que é muito amigo do meu pai, topou participar na hora — descreveu ao GLOBO Juliano, que é formado em Cinema.