Você anda pela cidade de carro: a cada semáforo, alguém lhe pede moeda ou lhe oferece umas balinhas por um real. Você anda a pé pela cidade: pessoas aceleram o passo para se aproximar, a fim de lhe pedir ajuda para uma marmita. Você senta à mesa do restaurante ou bar, próxima à porta, ou na calçada: o garçom precisa expulsar duas ou três vezes alguém que vem pedir esmola. Você contrata um encanador, pessoa que nunca viu antes na vida, e, no meio do serviço ele, chorando, lhe pede dinheiro emprestado para comprar um remédio para a esposa doente. Você vai à livraria e é atendido pela moça que cursou mestrado e viveu um ano em Londres, fluente em inglês: ela ganha pouco como balconista e dá umas aulinhas para complementar a renda. Você se entristece ao saber que a filha de vinte anos do seu melhor amigo perdeu o emprego porque a empresa em que trabalhava faliu. Você percebe que as próximas gerações (duas, três?), ou seja, pelo menos a dos seus filhos e netos, provavelmente usufruirão um padrão de vida inferior ao que você obteve –com enormes esforços, mas conseguiu.
Você é um sujeito de classe média, indignado por pagar muitos impostos (diretos e indiretos, disso você não sabia) e não sentir que recebe contrapartida: tem que ter plano de saúde chinfrim para evitar a fila do SUS, tem que bancar a escola dos filhos, se quer que recebam um mínimo de formação; além de se sentir ameaçado a cada vez que sai à rua, pela falta de segurança pública. Você já não tem mais empregada doméstica, porque agora isso implica uma relação trabalhista formal e seu salário já não permite esse luxo: contenta-se com uma faxineira duas vezes por semana.
Você anda injuriado no trabalho, anda se desentendendo com a esposa e os filhos adolescentes e está de cara amarrada com o vizinho, que eleva o volume do som todo final de tarde/começo de noite e não recolhe as fezes do cachorro dele na grama do seu passeio. Não sabe bem porque isso, esse afastamento das pessoas próximas, está acontecendo. Nem vontade de encontrar os amigos tem mais – já abandonou o futebol de final de semana.
Você não aguenta mais ouvir falar de política, nem ver a cara desses bandidos que tomaram conta do país. Já está de saco cheio só de lembrar que no final deste ano terá que enfrentar a fila das eleições. Apesar disso, pensa em política e fala a respeito todos os dias (sem se dar conta), antenado no que assiste na televisão (ai, até quando dará para pagar esse serviço?) e lê na revista semanal que assina, mas que já começa a pesar no orçamento.
Você quer uma solução final para esta baderna e essa injustiça contra sua pessoa, esforçada e dotada de méritos. Você não aguenta mais essa tolerância a relações, instituições, comportamentos, visões de mundo que produzem esse caos. Você deseja ordem, você quer bandidos na cadeia; você exige que cada um saiba pescar e não dependa de ganhar o peixe para sobreviver. Você pontifica: “Menos Estado na economia, menos governo atrapalhando a iniciativa privada!”
Você! O que significa, afinal, este “eu” que os outros tratam por “você”? Tratar-se-ia (olha que bonito falar assim!) de um ser em torno do qual tudo deve girar? Seria um indivíduo cujas opiniões devem ser respeitadas pelo que são, independentemente dos reflexos sobre os demais em decorrência de sua aceitação, independentemente de seus fundamentos? Seria um foco de luz que a escuridão desse mundo caótico e injusto se esforça por apagar? Seria um “eu” mal refletido no “você” a ele atribuído pelos outros?
Quem é você, ao fim e ao cabo, para, a partir de sua poltrona, de sua escrivaninha ou do teclado de seu celular, pontificar sobre o futuro, rejeitando tudo que essa política maldita produz, atacando todos que com essa política maldita se envolvem?
E eu, que estou lhe dizendo isso, quem sou? Você, provavelmente, responderá essa pergunta com um daqueles rótulos desqualificadores com os quais rechaça os argumentos de quem não concorda com suas opiniões. Talvez seja, também, um colecionador de frases de autoajuda e frequentador de espaços “religiosos” que lhe oferecem um Deus à sua imagem e semelhança.
Você, enfim, é um perigo, inclusive para si e para os seus. Vá se tratar.
Valdemir Pires é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.