Quando Jorge Luis Borges e Nelson Piquet se encontram
O filme ‘A forma da água’, de Guillermo del Toro, parece ter sido feito como uma luva para a cidade contemporânea. O amor entre uma sedutora criatura fantástica, espécie de Iara masculina, presa em um laboratório dos EUA nos anos da Guerra Fria, e Elisa, faxineira muda com uma vida cotidiana sem maiores atrativos, torna-se um relicário.
A obra tem tudo para ser venerada, pois conta uma história de entrega entre dois seres que parecem estar muito além das vicissitudes contemporâneas, em que o discurso produtivo caminha ao lado da desconstrução das sensibilidades e onde a discordância é interpretada como resistência.
Contam que o escritor argentino Jorge Luis Borges, ao ser perguntado como se sentia ao assumir a direção da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, respondeu apenas que havia se preparado a vida inteira para isso e que, ao ser chamado para dar uma palestra sobre William Shakespeare, apenas disse o nome do bardo inglês, se levantou e saiu.
O filme, considerado por muitos como favorito ao Oscar deste ano, caminha nessa mesma direção. Temos dois personagens que se encontram na plenitude por parecerem feitos para isso. Suas histórias anteriores, que pouco conhecemos, os formaram assim – diferentes; e fortes em sua aparente fragilidades de prisioneiro e de empregada.
E eles também não precisam de palavras. A criatura misteriosa acorrentada numa piscina urra de dor ao ser torturada e Elisa não pronuncia palavra alguma. Mesmo assim, ambas comunicam um universo de possibilidades de entendimento do mundo. Seus não falares são inteligências do cotidiano a serem desvendadas.
O filme nos lembra ainda o piloto Nelson Piquet em dois episódios. Ao ser perguntado sobre a quem dedica seu primeiro título mundial, disse: “A mim mesmo” e, certa vez, em uma entrevista que o incomodou, o filho tirou da tomada o cabo de luz dos refletores de iluminação.
Elisa e a criatura representam essa ambiguidade. Sozinhos por natureza, aparentemente não tem com quem contar. No entanto, para conseguirem realizar o seu amor,necessitam de três ajudas: um publicitário homossexual com desenhos vistos como ultrapassados perante a entrada da fotografia na área; um cientista russo, que coloca o conhecimento acima das rivalidades ideológicas, e uma colega faxineira que começa a descobrir que pode se libertar do estigma de ser mulher, trabalhadora e negra.
Sim, a água não tem forma. A forma é dada por nós e por nosso conceito de humanidade, qualquer que ele seja.
Oscar D’Ambrosio, jornalista, mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp, é Doutor em Educação, Arte e História da Cultura.