sexta-feira, 22, novembro, 2024

“Existe um povo que a bandeira empresta pra cobrir tanta infâmia e covardia?”

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Por_ Lígia Egídia Moscardini

“E hoje, relembrando Castro Alves,
O povo desce sambando e cruza os mares
E um afro canto banto nos devolve
A luta que nasceu com Zumbi dos Palmares! (…)

Morto, sim! Escravo não!
Canta sua memória lá na chácara do céu
Que a voz operária é do Borel!”
(Taiguara)

 

Em seus tempos de escola ou ainda em meio ao Ensino Médio, talvez o leitor tenha uma vaga lembrança de Castro Alves como um poeta que escrevia para ser recitado em voz alta em praça pública ou teatro, transbordando indignação com o massacre dos escravos. Sem titubear, empresto a mim a indignação recolhida do poeta: pois uma colega de Guarulhos, professora de português como eu, mestranda pela Unesp/Araraquara, foi impedida de realizar seu trabalho. Impedida, porque recebeu uma denúncia. Uma denúncia por exercer, normalmente, seu trabalho: uma mãe de aluno a denunciou porque estava trabalhando em sala o poema O Navio Negreiro, de Castro Alves. A mãe acredita que este texto não deveria ser abordado em sala porque a professora estaria ensinando “coisa de preto e de índio” aos alunos, “ao invés de ensinar pontuação e outros assuntos gramaticais”. E sim, a coordenadora se posicionou ao lado da mãe.

Enquanto eu também recolho meu queixo do chão, consigo ouvir, diante da minha tessitura da escrita, diversas vozes, de meus alunos antigos e novos, professores e pais, atônitos, estarrecidos, catatônicos, a ver se é loucura ou verdade tanto horror perante os céus: “não acredito!” “eu nunca vi uma coisa dessas!” “mas cai no vestibular!” “Mas Castro Alves fez sucesso em 1860!”

Castro Alves foi um dos primeiros a levantar questões sociais da identidade negra. Diz Carlos Dummond que foi um poeta “vivo, passional, visionário, permanente”. Se o autor é um clássico do nosso Romantismo estudado por Mário de Andrade e biografado por Jorge Amado, como é possível essa denúncia ter sido feita como foi?  Por que, apenas recentemente, alguns pais de alunos questionam conteúdos tradicionais de modo esdrúxulo, já com caráter punitivo, e sem procurar maiores diálogos com os próprios professores dos filhos?

Com certo ar de sala de aula explico, detalhadamente, que há um tal de “Escola sem Partido” sendo debatido na educação do país. Que, com nome bonito, é como se ele tivesse a intenção de “tirar partidos políticos da escola”. Certamente que na escola não deve haver partidos políticos, nem de esquerda nem de direita, mas não é bem isso que o projeto propõe. Primeiramente porque pouquíssimos professores são filiados em algum partido. Em segundo lugar, a prática é outra: utilizando o nome “escola sem partido”, mães e pais têm sido induzido ao erro por grupos conservadores para censurar e amordaçar pensamentos que tais grupos não concordam, como se a escola tivesse de ter um pensamento só. Desse modo, tem-se essa excrescência de censurar conteúdos transmitidos há anos, que demoraram para ser elaborados por professores e pesquisadores e compilados para os alunos. Algo científico, portanto.

“Coisa de negro e de índio” também são muito pesquisadas cientificamente, muito além o que sonha qualquer Projeto de Lei ou grupo conservador que não estão no chão de escola. Nem em chão de universidade. Em tempo, enquanto pesquisadora da área indígena, reitero a dívida histórica com etnias que veem sangue desde a colonização até os nossos dias, em que ressoam tanto o canto de morte quanto o de guerreiros. Por que debater tais assuntos transformaria o professor em criminoso? Infâmia e covardia, nos ensina o poeta, é tratar tais assuntos como meramente político-partidários. Sobre política, diz Paulo Freire que até mesmo a presença do professor é algo político e que o aluno precisa dessa referência. Pra não dizer que não falei da última flor do lácio, pontuação e outros assuntos gramaticais não são para censurar outros conteúdos, senão para nos mostrar – tais como os grandes poetas – o modo como a língua funciona. Compreender como a língua funciona é, precisamente, compreender a pluralidade de ideias – que o Escola “Sem Partido” visa proibir.

Em tempo: nessa quinta-feira, às 19:30, haverá audiência pública sobre o Escola Sem Partido na Câmara Municipal. Há a denúncia de que ela, agora, não aceitará falas de ninguém da sociedade, como pais, professores  alunos, e apenas contará com vereadores favoráveis ao projeto e que não vão permitir diversidade de ideias. – Será, então, uma prévia do que querem transformar as nossas escolas?

Redação

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