‘É uma dor insuportável’, diz vítima de acidente de moto que perdeu o namorado e o movimento dos braços

Dia Mundial em Memória às Vítimas de Trânsito, que ocorre sempre no terceiro domingo de novembro, é oportunidade para lembrar as vidas perdidas e chamar todos à responsabilidade individual para a segurança viária

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A memória vem em lampejos. O corpo sobre a grama, um rosto conhecido, a dor, o hospital, a notícia da morte. Ainda hoje, catorze meses depois do sinistro que levou o namorado, Gabriel Rodrigues, a esteticista Grazielly Santos, 21, não recuperou toda a sequência dos acontecimentos. Nem o movimento dos braços, prejudicado por uma lesão na coluna cervical causada pela tragédia. Grazielly foi arremessada da garupa da moto de Gabriel, que se chocou contra uma carreta na rodovia Santos Dumont, em Campinas, em julho de 2023. Teve fratura exposta na perna e ainda uma lesão no rosto, junto à pálpebra. Levada ao hospital, passou mais de sete horas em cirurgia, a primeira de muitas. Ele morreu na hora.

Grazielly e Gabriel, então com 19 e 20 anos, fazem parte da parcela da população que mais pressiona as estatísticas do sistema viário, e que evocará mais lembranças neste domingo, 18 de novembro, Dia Mundial em Memória às Vítimas de Trânsito (DMMVT ou WDR, na sigla em inglês). Instituída em 1995 pela Organização das Nações Unidas (ONU), a data cai sempre no terceiro domingo do mês de novembro, e tem por objetivo humanizar as perdas no trânsito, tanto como forma de homenagear as vítimas como de chamar a todos para a responsabilidade pela segurança nas vias públicas.

De janeiro a setembro de 2024, quase 2.000 motociclistas foram mortos no trânsito no estado de São Paulo, de acordo com dados do Infosiga, o Sistema de Informações Gerenciais de Sinistros de Trânsito do Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP). Mais precisamente, 1.925 perdas, volume que representa 42% do total de mortes no período e um aumento de 20% sobre o número de motociclistas que perderam a vida no mesmo intervalo do ano passado. Na capital, o aumento foi ainda maior, de 30%: morreram 355 motociclistas, 45% do total de óbitos no trânsito. 

“Ao lado dos pedestres, foco de uma nova política de estado e de campanha do Detran-SP, os motociclistas são hoje as maiores vítimas do trânsito, e requerem atenção. Nos dois casos, os elos mais frágeis do sistema viário, nosso esforço é para conscientizar sobre a importância do respeito ao próximo e reforçar as fiscalizações para evitar que se percam mais vidas”, afirma Anderson Poddis, diretor de fiscalização e educação para o trânsito do Detran-SP.

Juventude no radar

As vítimas, como no caso de Gabriel e de Grazielly, são na maioria jovens. A faixa etária de 20 a 24 anos é a mais atingida, oscilando em torno de 20% a 22% das vítimas fatais com motocicleta nos últimos cinco anos. De janeiro a setembro deste ano, 22% dos mortos por sinistros com moto estavam nesta faixa. Em segundo lugar, vem a faixa de 25 a 29 anos, que responde por cerca de 16% do total de motociclistas mortos.

“Os jovens motociclistas estão entre as maiores vítimas da violência no trânsito, uma realidade que deixa marcas profundas em famílias e comunidades”, diz Diogo Lemos, coordenador executivo da Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária Global (BIGRS, na sigla em inglês), braço da Bloomberg Philanthropies, organização filantrópica com sede na cidade de Nova York, que, por meio da BIGRS, tem como objetivo apoiar governos a adotar e implementar políticas e ações de segurança viária para reduzir o número de vítimas fatais e gravemente feridas no trânsito. A organização é parceria do Detran-SP na busca por soluções para um trânsito mais seguro e acessível para todos.

“O plano era agora estarmos na nossa casa, com nosso bebê. Falamos em nos casar no ano passado, não deu tempo”, conta Grazielly. Ela e Gabriel moravam juntos fazia cerca de dois anos, estavam comprando um carro. No dia em que tudo aconteceu, Gabriel passou a tarde mexendo na moto para encontrar amigos à noite. Grazielly diz ter se sentido mal e pedido que ficassem em casa. A vontade de encontrar os amigos, a juventude, falou mais alto. 

“Eu era sonhadora, gostava de viver a vida. Depois do acidente, passei a viver em uma bolha. Não estou mais estudando nem trabalhando. Eu amava o meu trabalho, com sobrancelhas, cílios e maquiagem. Minha mãe também deixou de trabalhar para cuidar de mim, e não há previsão de quando poderei ir sozinha até a esquina. Eu não consigo comer sozinha, escovar os dentes, trocar de roupa”, conta Grazielly. “Consigo ficar de pé, mas não por muito tempo. Tenho crises convulsivas e desmaios. Ainda está tudo de cabeça para baixo. Tudo o que eu quero é poder pentear meu cabelo.”

De acordo com o último balanço da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, criada pelo Governo do Estado de São Paulo e referência no atendimento a pessoas com deficiência física pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a lesão medular, que no caso da esteticista limita o movimento dos braços, é a principal consequência dos sinistros de trânsito. É registrada em 53% dos casos em que as vítimas se tornaram paraplégicas ou tetraplégicas. Amputação (26% dos casos) e lesão encefálica (15%) são outros desdobramentos frequentes.

Em reabilitação, Grazielly se aproximou ainda mais dos sogros, os primeiros rostos que viu ao abrir os olhos, sobre o gramado da rodovia Santos Dumont. Enquanto eles acompanham seu tratamento, ela convive com o desalento dos dois. “Eu vejo quanto é grande o sofrimento de uma mãe, de um pai. É uma dor insuportável, que não tem fim.”

Se a alta velocidade permitida em rodovias – na Santos Dumont, o limite é quase sempre de 110 km/h – contribuiu para o desastre de Grazielly e Gabriel, o motoboy Wander Pascucci Nogueira, 46 anos, foi vítima de uma dupla infração de trânsito cometida por outro condutor, enquanto fazia o seu trabalho. De Guarulhos, ele circulava pela cidade para fazer uma entrega, quando um motorista parou o automóvel em uma faixa de ônibus da avenida Brigadeiro Faria Lima e abriu a porta. Pai de três meninas, Wander não teve tempo de desviar. 

O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) interdita tanto o tráfego de automóveis por faixas destinadas ao transporte público como a abertura de portas sem antes verificar se não afetará ninguém. Trafegar por uma faixa exclusiva de ônibus é infração gravíssima, segundo o artigo 184 do CTB, justamente por colocar veículos em risco de colisão, além de prejudicar o fluxo do trânsito. A penalidade prevista é multa de R$ 293,47. Já a possibilidade de parar na faixa depende da sinalização presente no local. Quanto a abrir a porta voltada para a via, o artigo 49 veda que o motorista ou o passageiro o faça antes de se certificar de que não há perigo para si mesmo ou para outros. E o artigo 169 qualifica como infração leve, passível de multa, dirigir sem atenção ou sem os cuidados indispensáveis à segurança viária.       

“Um amigo passou pelo lugar do acidente e viu o Wander no chão. Ele foi me buscar no trabalho. Quando eu cheguei, tive um choque. Meu irmão estava consciente, mas mal conseguia falar de tanta dor. Ele teve o pulmão dilacerado, quebrou todas as costelas, perdeu um pedaço do pâncreas, sofreu ruptura no baço e hemorragia interna”, conta Adriana, quatro anos mais nova. Wander foi encaminhado para um hospital e passou por cirurgia, mas não resistiu. Morreu dois dias depois, no último 6 de setembro.

“Ele era o meu único irmão. As pessoas têm de lembrar que todos que saem às ruas têm família. Antes de pensar em si mesmas, é preciso pensar no próximo, que é o que mais falta à humanidade. Se cuidamos do outro, cuidamos de nós, também, porque criamos um ambiente melhor para todos”, diz Adriana.

Motoboy desde os 20 anos, Wander tinha o sonho de comprar uma casa para viver com a família. Ele deixa a esposa, agora em tratamento psiquiátrico, e três filhas de 14, 13 e 11 anos. Em quadro depressivo, a mais nova também tem sido acompanhada por um profissional de saúde mental. “Minha sobrinha não dormia direito, não queria comer. Até o gato da casa adoeceu. Teve depressão, complicações hepáticas, foi preciso mandar para o veterinário, pagamos R$ 2.000.”

No dia seguinte ao Dia Mundial em Memória às Vítimas de Trânsito, Adriana planeja procurar a polícia para ter informações sobre o caso, passível de punição. “Não vou descansar. Meu irmão foi vítima do erro de outra pessoa.”

Homens, as maiores vítimas

Sem a proteção de uma carroceria, um motociclista fica extremamente vulnerável à imprudência de outros condutores. De janeiro a agosto deste ano, segundo dados do Ministério dos Transportes, os sinistros com moto foram responsáveis por 38% das mortes no trânsito em todo o país – 3.305 vidas perdidas. No estado de São Paulo, o ritmo assusta: são sete mortes a cada dia. 

Com 46 anos completados em julho, Wander por pouco não se enquadra no perfil mais comum na Rede Lucy Montoro. Dos pacientes acolhidos pelo instituto, metade procura atendimento depois de uma ocorrência com motocicleta, 76% têm até 45 anos e 88% são homens. Quando se trata apenas das vítimas de sinistros com moto, o número desses recortes sobe: 91% têm até 45 anos e 89% são do gênero masculino. 

Dados do Detran-SP confirmam a prevalência masculina. Em 2024, 88% dos motociclistas mortos no trânsito, no estado de São Paulo, eram homens. Porcentagem que pouco variou nos últimos anos: foi a mesma em 2019, subiu para 90% em 2020 e ficou em 89% de 2021 a 2023. Na capital, os números são ligeiramente mais altos: a participação masculina entre motociclistas mortos, de 90% neste ano, chegou a 94% em 2020 e a 95% em 2021.

Há três meses, Leandro Aparecido Rosa passou a engrossar as estatísticas. Profissional da moto como Wander, ele foi a Rezende, no Rio de Janeiro, fazer uma entrega. Não voltou. 

“Toda manhã, ele me deixava na estação de metrô, de onde eu seguia para o trabalho, e nos falávamos pelo celular ao longo do dia. Mas, nesse dia, ele parou de responder por volta das 14h. Mais tarde, pouco depois de chegar em casa, recebi uma ligação do irmão dele. Meu cunhado havia sido procurado por um policial que atendia o caso do Leandro. A moto bateu atrás de uma carreta. A morte foi instantânea”, conta Ivina Carlos dos Santos, recepcionista na área de nefrologia do Hospital das Clínicas. 

“Eu não quis saber detalhes, comecei a gritar, chorar. Minha vizinha veio acudir. Depois, pelo laudo, eu soube que Leandro teve fraturas múltiplas e que, na batida, a veia aorta se rompeu. Ele morreu de anemia aguda pela quantidade de sangue perdida”, continua Ivina, que diz ainda não acreditar na perda. “Leandro era extremamente correto, usava capacete, era cuidadoso. Não misturava álcool com direção. Por isso, é difícil aceitar.”

Paraibana radicada em São Paulo desde os 14 anos, Ivina conheceu Leandro em uma festa de solteiros promovida por uma amiga, em 2019. Trocaram contatos e começaram a namorar dias mais tarde. Na pandemia, decidiram dividir uma casa em Guarulhos, onde viviam. Divorciados, ela tem duas filhas de um casamento anterior, de 20 e 30 anos, e ele, uma menina de dez anos.

“Falo bastante com a mãe da menina, elas moram em Belo Horizonte e eu as convidei para passar o Natal aqui, como era o desejo dele. Mas com a filha tenho dificuldade de falar, porque eu represento a presença inexistente do pai dele, do elo que havia entre nós”, diz Ivina. “É muito difícil viver esse luto. Estou tendo acompanhamento psiquiátrico no Hospital das Clínicas. Eu nunca mais me achei, desde aquele dia.”

Para Diogo Lemos, da Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária Global, o Dia Mundial em Memória às Vítimas é uma oportunidade para lembrar as vidas perdidas e chamar todos à responsabilidade. “Mais que um momento de reflexão; é um chamado à ação”, diz. “Reduzir os sinistros exige compromisso de todos — motoristas, gestores públicos e sociedade. Com políticas integradas e uma abordagem proativa, é possível transformar o trânsito, salvar vidas e promover uma mobilidade urbana segura e inclusiva.”

Redação

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