Lígia Egídia Moscardini
Que o leitor já deva ter assistido algo de novelas como Gabriela Cravo e Canela, Tieta ou Dona Flor e seus dois Maridos, não resta dúvidas. Ou quem sabe escutou um Dorival Caymmi que, inspirado na história de Mar Morto, viu doçura em morrer no mar. Além das adaptações, os livros de Jorge Amado sempre foram bem vendidos no país, só perdendo para Paulo Coelho, têm vasta aceitação mundial, como em Portugal, França e Rússia e foram emblemáticos para o projeto de independência de alguns países africanos.
Chamado de “populista literário” por Alfredo Bosi, ou acusado por outros de romantizar a pobreza, nota-se que seu sucesso estrondoso não foi suficiente. Entretanto, há várias maneiras de se ser um bom escritor, e uma delas é chamar atenção do povo, do povão mesmo, por meio de sua literatura e com linguagens que vão além dela. Talvez esse seja o maior feito de Jorge Amado: atingir a classe trabalhadora. Atingir críticos literários. Atingir estudantes bem jovens.
Nas escolas, nas ruas, campos, construções, é possível sim ouvir falar do escritor. Recentemente, ouvi sobre a tão-lida Capitães da Areia. Um aluno do 3º colegial me assegurou: “Professora, Capitães da Areia é o melhor livro do Brasil”. Ao que uma aluna de 9º ano disse: “eu pensei que ia ser chato, mas a leitura tá valendo a pena. Gostei do capítulo do carrossel”. E outro, ainda, do 9º ano: “Depois do que aconteceu com a Dora, eu não parei de chorar”. Além da escola, eis o relato de uma senhorinha simples, que parecia distante desse negócio de literatura: “Esse Capitães da Areia é bom, fala da realidade” – ao que segue um arremate: “estou lendo em voz alta para meu filho especial”. Se é que o inesperado faz uma surpresa, talvez não imaginássemos que fossem tantas. A não ser que lembremos o Jorge eleito deputado pelo PCB, com o mote “o romancista do povo”.
Mas o que há, por exemplo, nesse Capitães da Areia? Dentro de uma obra-prima como esta, o leitor, primeiro, percebe uma linguagem direta e sem tantas enrolações, já com intenção de “falar da realidade”: realidade de crianças abandonadas na Bahia de 1937. Jovens com quem o próprio Jorge Amado conviveu por um período em que dormiu no trapiche abandonado para escrever o livro. Com humanidade, com tudo.
A obra nos oferece um verdadeiro caleidoscópio literário: a sociedade que os julga “crianças ladronas, crianças bandidas, trombadinhas” conhece apenas a parte visível e óbvia. E é por meio a leitura que se dá protagonismo àquelas crianças, às suas situações e às contradições da sociedade. Um ponto comovente do livro é quando um dos garotos lança uma pergunta como que num grito: “por que é que todo mundo odeia a gente?”. Outro ponto de força do livro, um belíssimo contraste do livro, é o capítulo do carrossel: São crianças.
Mas também há o contraste horrendo, em que Jorge Amado e as obras passaram por censura. Há relatos de que a polícia invadiu a casa de Jorge e teria dito à Zélia Gattai: “Diga a seu marido que vamos beber o sangue dele”. Capitães da Areia foi queimada em 1937 pelo governo Vargas, por ser considerada de “propaganda comunista”.
Lá se vão 80 anos e a obra é condenada aqui em Araraquara. Pois uma professora foi denunciada na Diretoria de Ensino, por uma mãe de aluno alegando que a obra Capitães da Areia continha “pornografia”. Mas Araraquara não deixou por menos: houve protesto na Unesp, houve menção na audiência pública contra o Escola “Sem Partido” – que quer punir conteúdos transmitidos há anos – , houve menção no Magdalena.
Nesse sábado (26), estava previsto para acontecer um debate do filme Capitães da Areia, com duas professoras da Unesp, especialistas em literatura: Sylvia Telarolli e Ude Baldan. Uma edição da obra será rifada. Certamente um bom momento para se refletir sobre o ensino, a desigualdade social e o quanto essas questões estão presentes em Araraquara. ̶̶ Ou não lembrará o leitor que o sonho dos garotos de rua, que rondam esse frio absurdo, pode ser andar no carrossel que frequentemente chega com o parque ao lado do Sesc?