sábado, 23, novembro, 2024

Sobre a intolerância religiosa ou a “macumba” nossa de cada dia

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Dona Joana caminha em direção ao mar. Veste uma blusa da paróquia Sagrado Coração de Jesus. Ela fica olhando para o mar um bom tempo, as vezes mexe os braços levemente. Eu observo de soslaio para não a incomodar em seu momento. Dona Joana se vira para ir embora e no meio do caminho, tenho a impressão, se lembra de algo, volta fica mais alguns minutos com os olhos fixos no mar e depois segue em direção a igreja ao lado.

Marina caminha com Gael de três aninhos, que saltita, corre, pula, até que tropeça em algum desnível da calçada e cai, chorando. Sua mãe pacientemente coloca o garoto no colo e ele debulhando—se em lágrimas, aponta o joelho que doía. A mãe abaixa a cabeça dá um beijo no local e pousa sua mão em cima por alguns segundos e Gael vai parando de chorar aos poucos.

Pedro aprendeu algumas palavras para ir mentalizando no ônibus e assim se encorajar antes de entregar os currículos na sua busca por emprego.

O avô de Leandro pega umas folhas de arnica no fundo do quintal, coloca-as dentro de uma garrafa pet com álcool. Usa para passar nas pernas e aliviar as dores musculares como seu pai lhe ensinou.

Tânia sempre tomou – e não sabe dizer com quem aprendeu – chá de alfavaca para suas terríveis cólicas menstruais.

João sempre joga um pouco de sua pinguinha “pro santo”.

Antônia me disse que nunca cozinha quando está com sentimentos como tristeza, raiva ou dor, pois – disse ela – tais sentimentos passam para a comida.

De branco as pessoas arremessam rosas brancas no mar enquanto pulam sete ondas mentalizando pedidos de amor e paz para o novo ano.

Eu poderia elencar mais várias ações desse tipo para exemplificar o quanto nosso imaginário está repleto de práticas mágicas que são de origens de culturas afro-brasileiras, africanas e indígenas.

Sabemos pela “história oficial” sobre a imposição da cultura portuguesa e da religião cristã católica tanto para os nativos do Brasil quanto para os povos de vindos de África a partir de meados do século XVI, quando se iniciou o tráfico negreiro. Tal imposição objetivava a menor articulação possível entre esses grupos para assim conseguir extrair as riquezas do Brasil.

Porém a história não contada vem da resistência desses grupos nos interstícios dessa violência de desmonte, da história que não está registrada em livros, inclusive porque são sociedades de tradições oral, ou seja os registros são “contados” de geração em geração.

Agora falo mais especificamente da cultura africana que, apesar da tentativa violenta de seu apagamento visto ser julgada inferior e os africanos por muito tempo visto como seres com menor desenvolvimento, comparado a animais, consegue resistir ao tempo e à violência e manter algumas características gerando a cultura afro-brasileira que embora não percebamos, permeia nossa vida e nosso imaginário senão todos, quase todos os dias, ora em grandes manifestações como as que resultaram nos quilombos, no Candomblé, posteriormente – de alguma forma – na Umbanda, na capoeira, na casa das Tias Baianas, no samba, no carnaval e por vezes em lugares subjetivos, em pequenos gestos, como os citados acima, que precisamos passar a perceber.

Conhecer o quanto da cultura afro-brasileira nos compõe é importante para respeitarmos as tradições, os rituais, a diversidade, a história e a riqueza dessa religião. A nossa cultura é um amálgama de diversas histórias nas quais só uma é oficialmente contada e precisamos fazer cada vez mais o exercício de enxergar o quanto as histórias não contadas nos atravessam, fazem parte da nossa vida.

Existem diversas formas de se viver o Candomblé e a Umbanda e algumas características são comuns como a ligação e o respeito a natureza, a terra, aos animais e aos vegetais, o respeito a palavra e a crença em seu poder; existe um “dress code”, existem símbolos, “simpatias”, “palavras mágicas”, como em qualquer outra religião.

Muitas vezes todos nós utilizamos dessas “ferramentas de fé” independente de nossa religião, sem mesmo saber sua origem, porque afinal, o que deve prevalecer é o bem-estar de todos os seres, vivendo em harmonia e em sociedade, independente da forma que você ritualiza esse desejo.

Dia 21 de janeiro comemoramos o Dia Mundial das Religiões – criada em 1949, através de uma Assembleia Religiosa Nacional dos Baha’is, religião monoteísta fundada pelo líder Bahá’u’lláh, em meados do século XIX, na Pérsia – e no Brasil é também o Dia de Combate a Intolerância Religiosa instituído pela Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, em virtude da morte da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum (BA), que faleceu de infarto, vítima de intolerância, acusada de charlatanismo, teve sua casa atacada e pessoas da comunidade agredidas.

O preconceito é fruto do desconhecimento unido ao desrespeito e esses três juntos são violentos e podem matar, desviando do objetivo comum de qualquer religião que é o amor.  É só a partir do momento que nos propusermos a conhecer o que ignoramos que passaremos a enxergar o quanto do outro há em nós, o quanto nos unimos, o quanto somos semelhantes independente da religião, mas sim na busca de um bem maior, que seja de alcance a todos. A religião é só um meio que usamos para acreditar, acreditar no bem, acreditar no outro.

“Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”. (João 13:34) ou Ubuntu (das línguas Zulu e Xhosa, faladas por povos da África Subsaariana): “a minha humanidade está inextricavelmente ligada a sua humanidade.” (Desmond Tutu).

É preciso acreditar.

Redação

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