domingo, 10, novembro, 2024

A revolução dos bichos

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Outro dia acordei tão confuso (mais ainda do que de costume), que até hoje não consegui recuperar-me por completo e por isso, antes que me esqueça de tudo, tento registrar o estranho sonho que tive. Mas, na verdade, a confusão foi tanta e tamanha, que nem mesmo sei se ainda continuo sonhando, ou como se diz por aí, se já caí na real.

Não sei se foi influência de uma ressaca pós-carnavalesca, ou da complicada e atual conjuntura política tupiniquim, mas tenho (quase) certeza que não bebi demais, nem foi consequência de algum tombo que tivesse me afetado os sentidos. Talvez então agora seja caso de consultar um psiquiatra. Mas aí já seria um risco muito maior, de ele procurar me orientar tanto, de ir às profundezas do meu ego, do meu id e do meu superego, de tentar levantar vidas passadas, que aí então, em definitivo, perderia o norte completamente. Desisti.

Não foi por influência livresca, nem das “Fábulas” de La Fontaine, nem de “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell (do qual copiei o título desta crônica), nem mesmo de Ionesco, o autor de “O Rinoceronte”, pois de teatro do absurdo sou completamente jejuno.

A verdade é que comecei a perceber e a olhar as pessoas sob outro prisma, quiçá deturpado, tal como num filme tcheco que assisti há muitos anos, em que os personagens, usando óculos especiais, descobriam a verdadeira personalidade e o caráter das pessoas, que mudavam de cor conforme a ocasião. Os mentirosos, os bandidos e os políticos corruptos tinham uma cor, as inocentes crianças outra e assim por diante. Qual era mesmo o nome daquele filme?

Mas, voltando ao assunto. Tentava ver as pessoas, mas não as enxergava e nem as reconhecia como seres humanos e foi aí então que me preocupei mais ainda. Será que eu também não havia me transformado num animal qualquer ou mesmo num inseto, numa barata, como aconteceu com aquele escritor tcheco, Kafka, autor de “O Processo”, sufocado até à morte pela burocracia? Por isso fiquei longe do espelho.

Então, andando pelas ruas da cidade, comecei a ver muitos cães, das mais diversas aparências, mas certamente cães e não humanos, embora um tanto parecidos. Macacos tagarelando alegremente e fazendo mil-e-uma estripulias, destruindo o establishment, travestidos de cordeirinhos e estes, os verdadeiros, seguindo pacatamente os leões, os quais, por sua vez lideravam os outros animais, aproveitando-se deles, como sempre.

Urubus em busca de carniça, já saboreando os bichos mortos e os ainda sobreviventes; águias voando bem alto, mas aguardando o momento ideal para levar vantagem sobre os incautos terrenos; espertos camaleões mudando de cor a todo instante, a depender da ocasião, mas nunca ficando rubros de vergonha. Venenosas e rastejantes cobras criadas, atrás de pacíficos coelhos, além dos brutos rinocerontes, atropelando tudo e todos.

A onça e seus amigos espalhados pelos quatro cantos da cidade e os burros pastando tranquilamente; mas estes eram raros, raríssimos mesmo. Gatos e gatinhas esfregando-se nas esquinas escuras e os gaviões infiéis procurando pela presa mais fácil, em busca de comida apetitosa, mas perigosa. E também os elegantes e delicados veados desfilando nas praças, muitos travestidos de leões-de-chácara.

Alegres mariposas ainda desnorteadas pelos holofotes da fama; lagartos e lagartixas tomando banhos de sol nas piscinas; antas bitoladas, não sabendo o que queriam; cavalos imponentes carregando asnos às costas e desengonçados avestruzes completamente alienados, não se importando com nada; vaidosos pavões fotografados nas colunas sociais, esperando ansiosamente pelo próximo carnaval.

Elefantes e porcos em busca de Spas e fanáticas girafas altaneiras e arrogantes, tentando encontrar no céu a felicidade que ainda não acharam na terra. Falcões semelhantes aos norte-americanos, dominando pombos daqui e de lá.

Lisos bagres ensaboados, verdadeiros caras-de-pau, untados com óleo de peroba, determinados a conseguir, a todo custo, a adesão de pacatos carneirinhos votantes nas próximas eleições; espertas galinhas e tranquilas vacas sassaricando à revelia dos galos e dos bois, estes com os maiores chifres, tentando convencer as andorinhas de que uma só não faz verão.

Aí então, confuso demais, criei coragem e fui ver-me no espelho. Ora parecia um verme asqueroso, ora uma pensativa e filosófica coruja, mas, olhando-me atentamente, reconheci-me mesmo como um verme e da pior categoria, destilando fel por todos os poros.

Redação

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