Rodrigo Viana
Iniciei este texto na véspera do Natal do ano passado. Não consegui terminá-lo. Neste um ano escrevi meu romance autobiográfico – As Cartas que não chegaram – reelaborei a vida, fiz planos, projetos, afetos e desafetos. Mas o texto de Feliz Natal do ano passado não vinha. Estranhamente não vinha.
(corte para o Hospital Público de Matão, cidade vizinha à Araraquara onde, naquele 24 de dezembro de 2023, eu era submetido à infusão de cetamina – um anestésico poderoso – utilizado em casos graves de depressão refratária e ideação suicida).
Durante a expansão psicodélica que o medicamento induz, viajava no meu ‘k-hole’ particular – uma espécie de buraco negro em que o senso de tempo e espaço é distorcido. Um rapaz, no leito ao lado do pronto socorro lotado, levantou-se e veio até meu corpo, semiconsciente.
Quem já fez uso do psicodélico sabe da sensação de não pertencimento ao corpo e da dificuldade em controlar movimentos e sentimentos. Você fica ali, com os sinais vitais aferidos por uma espécie de monitor multiparâmetro: oxímetro, batimentos cardíacos, pressão arterial e um relógio regressivo, que controla o tempo de aplicação – aproximadamente uma hora no meu caso.
- ‘Faltam 8 minutos’ – disse o moço.
E aquilo me aliviou. Porque ele podia simplesmente desligar o aparelho. Ou me agredir, assaltar, matar o semi-morto ali, sei lá…. afinal, eu estava inerte, com sentidos e corpo distorcidos. Nada poderia fazer.
Aliviou também porque a ‘viagem’ iria acabar. Não que não seja bom. Em geral as sensações são agradáveis. Às vezes sinto que converso com deus e dou respostas a ele. Outras que sou uma montanha em movimento que caminha dentro do mar. Ou um ponto de luz extrovertido, um balão inflando bem devagar. Um vagalume extinto procriando. Também ganho mãos gigantes, transpasso o teto dos lugares onde morei. Vou ao passado e ao presente sem nenhuma linha do tempo. Requisito a presença de golfinhos. Isso tudo é muito agradável.
Mas o túnel, o buraco negro, é traiçoeiro. Quando a pessoa tem uma ‘bad trip’ usando cetamina ela também pode entrar num estado de desrealização, dissociativo, de desfragmentação do eu e da realidade. Ou seja, a pessoa deixa de conseguir compreender onde ela está, por que está, por quanto tempo está e até mesmo o que ela e tudo ao seu redor são.
- ‘Faltam 8 minutos’ – de alguma maneira aquele rapaz captou a onda que parecia eterna e fui recobrando a consciência.
Comecei a conversar com ele. Expliquei o que eu tomava, as funções da cetamina, falei sobre minha vida, meu pai, o Natal, os significados. E tudo ele foi entendendo, colocando também seu ponto de vista, querendo contar um pouco da sua própria vida:
- Às vezes eles me deixam no ponto zero. O ponto zero é quando ninguém te vê – repetiu isso pra mim algumas vezes. E fiquei entendendo que se referia à família, à sociedade em geral, suas vivências.
Perguntei o que ele fazia ali, no hospital, qual era seu tratamento. “Clonazepam, calmante”, é o que eles me dão. ‘Não adianta, pois não me tiram do ponto-zero.’ Em meio a falas filosóficas e pausadas havia interjeições com filtros religiosos, ambientais, sensoriais, como uma espécie de thriller de suspense:
- ‘Você conhece o sangue de Jesus?’
- ‘Sabe do aquecimento da Amazônia e das chuvas que vão devorar o Sul?’ (incrivelmente essa fala foi antes das chuvas do Sul do início do ano!)
- ‘Feche a porta, para que os enfermeiros não nos ouçam, é melhor!’
E fui percebendo que, à medida que eu voltava à realidade (o efeito lisérgico da cetamina ia passando), ele acompanhava meu k-hole ao contrário: isto é, eu saía do túnel e era o moço quem entrava numa narrativa psicodélica sem fazer uso de nada. Apenas insights. Profundos. Pontinhos de luz.
Meu lado racional não suportou tanta verdade sóbria. Perguntei se ele já havia sido internado. Disse que sim, com tranquilidade. E que estava ali para ser internado novamente. Tenho algum conhecimento de condições do espectro de saúde mental e, logo percebi que meu colega, leito ao lado, que me tranquilizou com o relógio da cetamina, era portador de algum traço diferente, esquizoide.
- ‘Qual seu nome?’ perguntei.
‘Adriano. O cara do ponto-zero, que ninguém vê.’
Ofereci meu telefone. Ele disse que me acharia se fosse necessário. Saí dali impactado. Pela prisão desse mental avassalador, forte. Queria fazer algo: rezar, cantar, oferecer uma dose de café ou cetamina, dizer ao Adriano que tudo ia melhorar, que ele não era o ponto zero de porra nenhuma.
De nada adiantou. Fui embora quieto. Chorei meu tanto. Mas durante todo esse ano fiquei pensando no quanto essas questões, humanas e reais, tem uma uma importância tão maior que as digressões polarizadas de hoje em dia, sobre direita/esquerda, bem/mal, certo/errado etc.
A saúde mental, antes tida apenas como ‘loucura’ e hoje alvo de um sem número de classificações, segue relegada à exclusão que vai muito além deste além-discurso médico e terapêutico. Panaceia midiática de redes sociais. Estas sim, distorcidas.
Ao sair, perguntei na enfermagem porque Adriano estava ali: ‘ele é esquizofrênico e vai ser internado. Não é a primeira vez’, disse a moça sem nenhuma alteração na voz.
Hoje, um ano depois de encontrar o Adriano, faço o gesto que consigo, que me é possível. Escrevo a você, caro amigo – e assim escrevo a mim mesmo e a todos que me leem:
O ponto zero é uma situação onde não há espaço nem matéria, apenas energia de alta frequência.’ Uso a definição da mecânica quântica pra te agradecer a frequência, a aproximação, as lições. Tua condição – a esquizofrenia – valida o meu pensar e o meu sentir – as ilusões, os chamados pensamentos mágicos, intuições e superstições tão reais. Paralelo é o ser-humano, desfragmentado deste tempo.
Ainda nos falaremos. Feliz Natal, Adriano. Tava te devendo essa, amigo.
*dedico este texto, real e tão difícil de rabiscar, especialmente à minha mãe, de quem herdei a coragem de escrever, mesmo com as mãos trêmulas.