terça-feira, 2, julho, 2024

O Mapa da Violência:  um descaso com a vida das mulheres

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Dra. Edna Martins (*)

Não bastassem a violência e o ódio alimentados pela polarização política, as ameaças à democracia, e a violência cotidiana contra as meninas e mulheres brasileiras, tramita na Câmara dos Deputados uma espúria tentativa de retrocesso aos direitos das mulheres, uma aberrante violência legislativa que agrava ainda mais a brutal realidade que afeta as meninas e mulheres no Brasil.

Numa conjuntura de crescimento de crimes de ódio e de renascimento de movimentos ultraconservadores, os direitos das mulheres mais vez foram eleitos como inimigo número um. Simone de Beauvoir, escritora francesa e uma das precursoras do movimento feminista, já alertava que ‘basta uma crise política e econômica para que os direitos das mulheres sejam ameaçados’.

O PL 1904/2024 em tramitação no Congresso Nacional em caráter de urgência, equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos previstos em lei de gravidez resultante de estupro, risco de vida da gestante e feto anencefálico.

No Brasil, a interrupção de gravidez é permitida e garantida nos casos em que a gestação decorreu de estupro da menina e da mulher, representa risco de vida para a mãe e também em situações de bebês anencefálicos, sem estabelecer um tempo máximo de gestação para o aborto.

Trabalhei durante muitos anos no atendimento de mulheres vítimas de violência no Cedro-Mulher – Centro de Defesa dos Direitos da Mulher-, e sempre foi muito chocante ver o sofrimento das meninas e mulheres estupradas e da família dessas pessoas. É um sofrimento inimaginável.  

Fazendo coro com uma política de retrocessos em várias áreas, os deputados resolveram regredir na legislação para punir as meninas e mulheres que recorrerem ao aborto legal após o estupro. Fico pensando porque esses deputados resolveram atuar exatamente para punir as mulheres? Por que não punir com mais efetividade os agressores? No entanto, para punir mulheres, decidiram em 27 segundos que o assunto era urgente.

São muitas as urgências nessa área, as mulheres são mortas, são violentadas, são agredidas com uma ampla exposição midiática dos fatos. Mas, ao que tudo indica, não estão preocupados com a vida das mulheres.  Se querem o título de defesa da vida, seria necessário defender a vida de todas as pessoas, inclusive das mulheres.

Em Nota Oficial, o PSDB refutou a proposta. “O projeto de lei 1904/24 que equipara o aborto em gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio é o fim dos tempos. Essa proposta é um absurdo. Criminalizar a mulher ainda mais meninas e aquelas que tenham sido vítimas de estupro não é cristão, é desumano. Não bastasse isso, o texto do projeto estabelece que a pena para a mulher vítima de um crime hediondo como o estupro seria maior que a pena de seu estuprador. É desumano e sem sentido. E o que dizer de crianças, que muitas vezes sequer têm noção clara da violência que sofreram, serem julgadas como criminosas, não como as vítimas que são? O PSDB defende a democracia, a humanidade e o direito de todos que se sentirem injustiçados buscarem no Estado e na Justiça o apoio para uma vida digna”.

O estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) “Elucidando a prevalência de estupro no Brasil a partir de diferentes bases de dados”, publicado em 2023, estima que ocorrem 822 mil casos de estupro no Brasil a cada ano, o que equivale a dois estupros por minuto. Este estudo também destaca que crianças e adolescentes são 70% das vítimas de estupro, com o pico de idade aos 13 anos. A pesquisa também estima que apenas 8,5% dos estupros estão sendo identificados pela polícia e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. “É como se a sociedade brasileira tomasse conhecimento do fenômeno visualizando apenas a ponta de um iceberg, sem enxergar o que está abaixo da linha d’água, das relações sociais, em que muitas vezes no seio do núcleo familiar, nas relações de amizade, conjugais e entre pessoas desconhecidas, impera ainda a barbárie contra a liberdade e dignidade sexual dos indivíduos”, avalia o estudo.

Neste mês também foi divulgado o Atlas da Violência, relatório produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Meninas de até 14 anos são as principais vítimas de violência sexual em comparação com mulheres adultas. O relatório revela que, em 2022, 30,4% das meninas de 0 a 9 anos sofreram violência sexual. Esse percentual aumenta significativamente para 49,6% entre as meninas de 10 a 14 anos.

Os dados utilizados no Atlas são provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), um sistema do Ministério da Saúde que registra, de forma obrigatória, qualquer caso suspeito ou confirmado de violência doméstica/intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas contra pessoas de todas as idades.

Esses dados representam apenas os casos oficialmente registrados no Sinan, e o Atlas da Violência destaca que muitos incidentes não chegam ao conhecimento das autoridades. A estatística considera exclusivamente os dados de violência sexual, sem detalhar casos específicos de estupro. Em um contexto mais amplo, os dados revelam um aumento expressivo nos registros de violência sexual em 2021 e 2022, comparados a 2020, especialmente no período pós-pandemia. A faixa etária de 5 a 14 anos foi a mais afetada, com um aumento de 73%, passando de 11.587 registros em 2020 para 20.039 em 2022.

Um outro estudo confirma que todas as formas de violência contra a mulher apresentaram crescimento em 2022. É o relatório “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os dados apontam para os maiores níveis de vitimização por agressão e assédio desde a primeira edição da pesquisa, realizada em 2017.

O Anuário de Segurança Pública Brasileiro 2023 reforça essa triste realidade, a partir de registros administrativos que indicam a busca de ajuda de autoridades. Os feminicídios cresceram 6,1% em 2022, resultando em 1.437 mulheres mortas simplesmente por serem mulheres. Os homicídios dolosos de mulheres também cresceram (0,9% em relação ao ano anterior).

Além dos crimes contra a vida, as agressões em contexto de violência doméstica tiveram aumento de 2,9%, totalizando 245.713 casos; as ameaças cresceram 7,2%, resultando em 613.529 casos; e os acionamentos ao 190, número de emergência da Polícia Militar, chegaram a 899.485 ligações, o que significa uma média de 102 acionamentos por hora.

Além disso, registros de assédio sexual cresceram 49,7% e totalizaram 6.114 casos em 2022 e importunação sexual teve crescimento de 37%, chegando ao patamar de 27.530 casos.

Em 2022, 245.713 mulheres registraram boletim de ocorrência para agressões ocorridas no ambiente doméstico ou dele decorrente. Isso significa que mulheres se deslocaram até uma delegacia de polícia para denunciar um episódio de violência doméstica, crescimento de 2,9% em relação aos registros do ano anterior.

As ameaças também apresentaram crescimento e resultaram em um total de 613.529 registros, o que significa um aumento de 7,2% em relação a 2021. A ameaça é uma das formas de violência psicológica que o agressor pode exercer sobre a mulher, causando dano emocional e mantendo-a sob seu jugo por medo.

Já a violência psicológica enquanto tipo penal foi tipificada em 2021 e resultou no registro de 24.382 boletins de ocorrência, com taxa de 35,6 mulheres por grupo de 100 mil (considerando que oito unidades federativas não enviaram os dados sobre o crime).

Outro crime tipificado recentemente é a perseguição, prática também conhecida como stalking, que resultou em 56.560 casos de mulheres vítimas em 2022, uma taxa de 54,5 por 100 mil. O monitoramento desta modalidade criminal é fundamental, dado que o stalking é fator de risco para a ocorrência de feminicídios.

Essa é a triste realidade das meninas e mulheres brasileiras. Não vê quem não quer, salta aos olhos o tamanho do problema. Repetiremos, Menina não é mãe, estuprador não é pai. Precisamos dizer um sonoro não à esta atitude da Câmara dos Deputados e cobrar deles compromisso com o combate à violência contra as mulheres. Assim, estaremos resolvendo vários problemas decorrentes dessa violência.

(*) Dra. Edna Martins é socióloga e presidente do PSDB/Mulher do Estado de São Paulo

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