Fábio Nieto Lopez
Dizem que se há uma certeza inquestionável é a de que vamos morrer, de que há um começo, um início e, necessariamente, um fim. Alguns dizem mais ainda, que viemos sozinhos e assim partiremos, não trouxemos nada e nada levaremos. Vocês devem ter ouvido dizer da figura de um barqueiro que fica na margem da vida, de nome Caronte, que conduz quem vem e quem vai, quem chega e quem se despede, em uma embarcação estreita para apenas uma pessoa.
Mas é como se meu vô Cândido, engenhoso e traquina como só ele, ao partir, me deixasse com uma vastidão de decifrações por completar. Ele é dessas pessoas que só falam parte ínfima do que pensam, de uma mente inquieta que investigava o mundo com o apetite das crianças quando aprendem a andar, um olhar que investigava peças aparentemente soltas e aleatórias, mas que ele encaixava ou inventava novos usos. Em uma das fotos que guardo dele, está com um quebra-cabeça de madeira em uma de suas mãos, como se completasse fielmente sua imagem.
Meu vô era um homem elegante, de gestos distintos, coluna ereta, roupa impecável apesar do comportamento inquieto de quem inventa trabalho. Eu gostava de me aproximar dele e observar o que fazia e falava. Não sei o que me deixava mais fascinado, se era ele consertando bola de capotão, inventando uma máquina de cortar grama com motor abandonado, ou se era ouvindo suas histórias da mocidade, quando pegava o cavalo para ir nos bailes, à noite, na zona rural de Mutuca. Homem sábio, engenhoso, contador de histórias e brincalhão. Não à toa que meu primo, Ricardinho, resolveu fazer engenharia e trabalhar com trens, coisa que meu vô fazia em Bueno de Andrada.
– Você sabe que ontem eu passei a noite inteira de joelhos?
– É mesmo vô, que coisa curiosa, como foi isso? Eu perguntava, já sabendo o desfecho.
– Foi assim porque eu não fui capaz de tirar o joelho para dormir. E fazia uma expressão irônica inesquecível. Acho que eu queria mesmo era vê-lo se divertir, dar as risadas dele, poucas, econômicas, mas repletas de vivacidade e prazer. Esse senhor incrível, certa vez, vendo que os netos queriam fazer uma apresentação de teatro, construiu um palco de madeira no quintal da casa dele, com cortina, iluminação colorida, saída para um camarim improvisado. Com a ajuda dos tios e tias, tivemos uma noite inesquecível! Ricardinho engenheiro, eu diretor de teatro e palhaço.
Minha vó Virgínia contava que, certa vez, em Mutuca, quando ainda era menina, a professora falou: amanhã, todos venham de sapato, porque receberemos a visita de uma pessoa importante e queremos todos bem vestidos. No dia seguinte, minha vó passou pela casa de sua amiga para irem juntas para a escola, como de costume. A amiga abriu a porta em silêncio, um pouco entristecida. O olhar logo foi para o chão: minha vó de sapatos, a amiga com apenas um pé calçado. Pegaram o caminho de terra até a escola distante sem falar no assunto. Passado um trecho a amiga começou a chorar. Ela não queria chegar assim. Minha vó não pensou muito, pegou os sapatos dela e o único pé de sapato da sua amiga, esconderam no caminho e seguiram as duas, descalças, para a escola.
Imagino as duas seguindo alegres, apesar da provável reprimenda que receberiam da professora. A força da amizade e cumplicidade foi maior do que o embaraço de estarem descalças. Essa mulher maravilhosa é a Virgínia, que meticulosamente soube e cuidou de amigas sem sapato, filhos, netos, bisnetos, noras, genros, parentes distantes, parentes dos parentes. Fazia sacrifícios diários para cuidar dos seus.
Ela, só aparentemente franzina, atravessou os tempos da roça em Mutuca, em Bueno de Andrada e, juntamente com meu vô, garantiu a sustentação de um quintal generoso a todos nós que viemos depois, e que não sofremos as dificuldades da migração da vida rural para os desafios da cidade maior, Araraquara. Não consigo me lembrar de reclamações naquele cotidiano de trabalho intenso desde as primeiras horas da manhã, fazendo a marmita do meu vô, cuidando do quintal, da sua cozinha impecável, dos netos que abrigavam por perto. Encontrá-la sentada somente era possível à noite, para
ver a Hebe Camargo, quando, mesmo sem se permitir, acabava cedendo ao cansaço e dormia.
Os netos, nutridos daquele quintal farto de frutas, das guloseimas scondidas no armário, do pão quente saindo do forno, achávamos graça dos dois dormindo cansados. Meu vô, deitado no sofá maior, minha vó dormindo sentada. Nosso desafio era aproveitar a brecha do sono deles para mudar
de canal. Para quem se lembra, isso era muito difícil nos tempos em que se tinha que girar uma roda pesada, barulhenta. Minha vó acordava, via a cena e perguntava: Acabou a Hebe? A gente voltava para o canal dela, mas depois ríamos disso.
Naquele tempo eu não conseguia me colocar no lugar deles e saber de tudo o que fizeram e faziam por nós, não sabia interpretar o cansaço e os poucos momentos de relaxamento de uma vida forjada no trabalho e esforço constantes. Mas depois, rodando por estradas, passados os anos, fui compreendendo melhor o chão do qual me fiz. Entendi que somente poderia trilhar os longos caminhos dos estudos porque duas gerações anteriores aplainaram o caminho. A casa deles era a base familiar, o centro de onde partiriam nossas maiores aventuras. Avança muito quem sabe para onde voltar.
Apoiaram-se mutuamente durante toda a vida e o fizeram também nos dias finais, um sustentando o outro, um adoecendo com a ausência do outro. Ficaram juntos no mesmo quarto de hospital, até que minha vó teve que ser conduzida para outra ala. Desta separação, talvez, os restinhos das forças que os mantinham por aqui sucumbiram em poucas horas.
Ela, com 99 anos, entrou no barquinho da vida para atravessar para a outra margem. Viajaria só.
Viajaria? Não.
– Vamos, Virgínia, é chegado seu tempo – chama o barqueiro.
Antes de entrar no barco, porém, aguardou seu parceiro de existência que, no dia seguinte, com seus 98 anos, foi ao seu encontro, mancando, não porque estava doente, mas para fazer graça e vê-la sorrir. Não a queria chateada. Distraiu o barqueiro com um quebra cabeça e sentou-se ao lado da esposa.
– Achei que não viesse, véio (fala, fingindo estar brava. Sorri).
– Aonde você pensa que vai, sem mim? Riem.
– E os meninos, as meninas, como vão ficar?
– Ah, já estão crescidos.
Antes que fossem e que esse texto acabasse, queria estar com eles mais uma vez e perguntar. Se a gente sabia que esse dia chegaria, porque é que dói tanto? Ora, e você não sabe? Dói porque as marcas cravaram fundo. Dói porque nós somos almas das mesmas águas, filho de meu filho. Só não
dói quando a gente não se importa. Agora vá e cuida de seu quintal, planta suas árvores e conta suas histórias. Junte o seu quebra-cabeça.
Dão as mãos e seguem.
Segue o barquinho na travessia inevitável.