Acho que vamos perder a sala, cinco máquinas de meias Brener, e a histórica decisão da meia noite

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Fernando Passos*

Em uma das minhas crônicas dominicais da Tribuna escrevi “Meias para muito além dos pés”, falando da Lupo. Quando nasci, a Lupo já tinha 42 anos e aprendi com meus pais a importância da fábrica em nossas vidas. Fui descobrindo que a Lupo era muito mais que o portentoso relógio de sua fábrica que nos orientava, fato ressaltado na placa do “Caminhos Ignácio de Loyola Brandão”, estrategicamente colocada em frente a antiga fábrica. A Lupo foi se tornando assim verdadeira paixão nacional. Hoje está presente em 5.500 cidades brasileiras e 27 países.

Em todas as minhas viagens sempre levava meias lupo para presentear. Hoje levo produtos lupo em sua mais variada gama. Até Fidel Castro recebeu meias lupo levadas por mim. No recente livro “A Saga dos Lupo – Origem, Ocaso, Renascimento”, continuidade do espetacular “Addio Bel Campanile”, escrito por Ignácio de Loyola Brandão e Rodolpho Telarolli, nosso imortal Ignácio assim sintetiza: “A história da Lupo é tão cheia de sensações como um filme ou um romance que cativa o público. Nessa trajetória misturam-se arrojo, criatividade, inovação, angústia, vitória e ousadia em lances que surpreendem”.

O sonho teve início no século passado, quando em 31 de março de 1921, Henrique e sua esposa, Judith, oriundos do comércio de relógios, decidem montar uma artesanal fábrica de meias. Conforme já escrevi, “Tudo funcionava na casa deles, na sala de jantar (iniciou a história com uma frase à sua esposa: ´acho que vamos perder a sala”), e a família toda participava´. Foi um anúncio publicado no jornal “O Estado de S. Paulo” que os empolgou: “Cinco máquinas de meias Banner. Novas e sem uso. Vendem-se ao preço de 4.000$000 cada uma. 240 agulhas 3 ¾.

“A decisão da meia-noite” é talvez a mais bela das histórias que li no livro mencionado. Henrique, Judith e Rolando estavam em casa aflitos à espera de Rômulo que chegaria de sua primeira longa viagem para vender as meias. Rômulo chega perto da meia-noite muito desanimado. Vendera pouquíssimo. Argumenta aos pais e ao irmão que a meia era mais cara do que a da concorrência e por isso não conseguia vendê-las, embora tivesse reconhecida qualidade superior. Eis o dilema: “fazer meias baratas, que durem pouco, ou fabricar a melhor meia, que dure muito?”. Diante do dilema, Henrique sentencia: “Está decidido. Qualidade”.

A partir da correta decisão houve crescimento sem fim. A Lupo era a maior empregadora da cidade e em geral mulheres. Ignácio também conta o frisson que era a troca do turno na fábrica. Em artigo publicado na Revista Uniara, vol. 18, 2005, a pesquisadora Ângela Caires descreve as caravanas de funcionários para Santos que se tornou política da empresa a partir de 1938 com relatos extraordinários quase sempre de quem viu o mar pela primeira vez. Chama de “A moral do trabalho” evidenciando a visão empreendedora de Henrique Lupo a garantir esse bem-estar no ambiente do trabalho. A Lupo chegou até mesmo a fornecer meias para o Exército Brasileiro.

Em 1980 a nova fábrica na Washington Luiz, 1987 a modernização dos teares circulares vindos da Itália e das maquinas de costura automáticas compradas no Japão. Em 1991 talvez a maior decisão: diversificação. Lupo não seria mais símbolo somente de meias, mas também de cuecas. O mercado vibrou com a qualidade e a gama de novos produtos nunca parou. 2010 a Lupo Sport que já roda todo o país; 2016 a aquisição da Scalina com as marcas Trifil e Scala. Viva, Trifil também passa a ser nossa e 2018 uma vitória inimaginável: Lupo se torna Marca de Alto Renome. Como Prof. de Direito Comercial sei o valor dessa conquista. Para poucas marcas brasileiras, aliás.

Hoje a Lupo com faturamento anual acima de 1 bilhão de reais é verdadeira Instituição nacional, atuando na filantropia, incentivo à cultura e educação, além da sustentabilidade ambiental. Foi pioneira em diversas tecnologias aplicadas em seus produtos como a Seamiless Dry. Mas, Ignácio diz que a saga é marcada também pela angustia e o ocaso. É verdade, nos anos 90 a crise atinge a Lupo. Surge a “gigante” Liliana Aufiero, neta do fundador a comandar a saída da crise e a retomada da produção. Como isso foi possível? Helena de Lorenzo e Ângela Caires publicam também na revista associada à Uniara um artigo em que respondem ter sido isso possível pela conjugação de 3 fatores, sendo o principal deles o 1º: “a força da família associada ao conhecimento pessoal da diretora para as questões técnicas e tecnológicas e a sua disponibilidade para o aprendizado”.                  

Valeu muito a pena abdicar da sala e decidir o correto à meia noite. Viva a Lupo em seus 104 anos a favor de Araraquara e do Brasil.

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