Em abril, a farmacêutica Lorice Scalise foi apontada presidente da subsidiária brasileira do grupo suíço Roche, tornando-se a primeira mulher, e primeira latino-americana, a ocupar este posto ao longo dos mais de 90 anos em que a multinacional está presente no país. Lorice é graduada pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, no câmpus de Araraquara, e ressalta a importância de sua experiência na universidade para pavimentar sua posterior trajetória profissional. Uma experiência que não se limitou à absorção de conhecimentos técnicos e teóricos, mas incluiu também o desenvolvimento da capacidade de diálogo, a escuta ativa e a liderança, habilidades fundamentais para que pudesse chegar à posição que ocupa atualmente.
Ela conta que encontrou a oportunidade para aprimorar essas habilidades interpessoais no ambiente acadêmico ao atuar no movimento estudantil no câmpus de Araraquara, ainda nos anos 1990. Ela integrou o centro acadêmico e foi representante dos alunos na congregação da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, órgão deliberativo e normativo da instituição. “Participei do movimento estudantil e acho fundamental que a universidade ofereça esse espaço, pois também é importante para a formação do indivíduo”, diz.
Lorice pondera que, ainda que a relação entre o movimento estudantil e os professores e a própria instituição universitária possa às vezes ser discordante, esse exercício de cidadania e prática política é fundamental. Esse aprendizado é algo que os estudantes podem trazer consigo para as etapas posteriores da vida, depois de concluída a fase formal de educação. “Me lembro de estar sentada junto aos professores do câmpus e ao reitor da Unesp, na condição de representante dos alunos, e constatar que eu tinha voz naquele ambiente. Escutar os debates dessas pessoas era algo muito inspirador. Destaco isso porque esse exercício teve uma influência muito grande na minha formação e na minha liderança hoje”, diz.
Perspectiva local para a direção
De fato, liderança e jogo de cintura são habilidades fundamentais para estar à frente de um time de mais de 1.300 funcionários e gerenciar uma operação que, no ano passado, gerou uma receita líquida de R$3,7 bilhões. O Brasil é o sexto principal mercado para a Roche, um dos maiores grupos farmacêuticos do planeta e presente em nações como Alemanha, Canadá, China, Espanha, França, Itália e Inglaterra.
Periodicamente, os presidentes responsáveis pelas operações nos diferentes países se reúnem para discutir pesquisas clínicas, decisões comerciais, investimentos e demais estratégias globais da farmacêutica. “O interessante nessas reuniões é que a gente pode levar a voz do Brasil e da América Latina”, diz a farmacêutica. Ela vê a oportunidade de ser a primeira mulher e a primeira latino-americana à frente da Roche Brasil como “uma honra, um prazer, e também uma grande responsabilidade”.
“A Roche tem sido muito feliz em sua busca por pessoas nativas com capacidade e condições para gerenciar a atuação nos seus respectivos países. Isso pode trazer elementos interessantes para a discussão”, diz. Para exemplificar essa perspectiva “local” que ela trouxe para a função, a egressa da FCFAr cita a relação com o Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma estrutura com a qual a Roche está em constante interação em suas atividades. “Uma coisa é ouvir falar do SUS e da complexidade do sistema de saúde do Brasil. Outra coisa é alguém que vive tudo isso na própria pele”, diz.
Atuando há 23 anos na multinacional, Lorice viveu entre 2014 e 2017 entre a Suíça e o Japão, desenvolvendo um equipamento voltado para testes de bioquímica e imunologia. De lá, foi direcionada para a Argentina, onde assumiu a posição de gerente-geral na área de Diagnóstico, que ao lado de Farmacêutica e Diabetes, forma as três unidades de atuação da empresa. Depois de quase uma década “pelo mundo”, Lorice explica que o retorno ao Brasil está sendo marcado pelo encantamento. “A gente volta com outra cabeça. Estou encantada com os filmes, com a música, com a cultura. Ao mesmo tempo, estes meses [desde o retorno ao Brasil] foram superférteis. Em todo lugar que olho, encontro novas ideias e vejo novas possibilidades”, diz. “Acredito que, neste momento, o que a gente mais precisa no Brasil é de espaço de diálogo para construir alternativas que possam mudar o estado em que estamos hoje, principalmente no campo da saúde.”
Unesp como caminho natural
A Roche é hoje uma das principais empresas de biotecnologia do mundo, e tem na atuação em pesquisa e inovação o coração do negócio. No Brasil, a companhia já conduziu mais de 130 estudos clínicos em parceria com mais de 500 centros de pesquisa. A maioria dessas parcerias, entretanto, foi estabelecida com o sistema privado de saúde. Lorice defende a manutenção de um diálogo constante entre os setores público e privado para que sejam encontradas oportunidades que interessem a ambos, e que isso vale também para as colaborações com as universidades. “A universidade pública precisa preservar sua autonomia para pode pesquisar aquilo que não desperta interesse por parte da iniciativa privada. Esse é um ponto. Ao mesmo tempo, a sociedade é esse mecanismo formado pelo público, pelo privado e pelo indivíduo. Acho que existem várias circunstâncias em que os interesses se cruzam, e podem aparecer oportunidades”, argumenta.
Para a CEO da Roche Brasil, é por meio de um diálogo mais frequente que essas oportunidades vão ser aproveitadas, “e não quando a indústria já tem uma pesquisa pronta e tenta emplacá-la na universidade, ou vice-versa”. Lorice destaca que, atualmente, a empresa desenvolve um estudo clínico relacionado a anemia falciforme em que a Unesp, no câmpus de Botucatu, é uma das colaboradoras. “A Roche está sempre aberta a essas alianças quando elas fazem sentido para os dois lados”, diz.
Lorice nasceu no município de Borborema, no interior do estado de São Paulo, e estudou em escola pública. A Unesp foi sua primeira opção para o vestibular. “Eu nem prestei para USP. A Unesp para mim era uma caminho natural pela conexão que tem com o interior, onde eu vivia”, diz. Ela considera um dos pontos fortes da universidade a sua diversidade, que é também um desdobramento do grande número de campi que ela possui espalhados pelo estado. “Se você é de Presidente Prudente, você é da Unesp. Se você é de Jaboticabal, você é da Unesp. São José do Rio Preto também é Unesp. A gente se reconhece mesmo não estando todos no mesmo lugar. Isso traz uma diversidade muito linda”, diz. “Mesmo dentro do câmpus de Araraquara, com diferentes cursos, a gente via essa multiplicidade, havia gente de todas as partes do estado.”
Historicamente, a presença da Unesp no município de Araraquara inclui quatro unidades. Além da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, a cidade abriga a Faculdade de Odontologia, ambas oferecendo cursos relacionados às Ciências Biológicas, a Faculdade de Ciências e Letras, com uma oferta de cursos mais voltados para a área de Humanidades, e o Instituto de Química.
Curso estimulava a curiosidade dos alunos
Lorice recorda que o curso de graduação oferecia uma formação diversificada. “O aluno aprendia a ser curioso”, diz. Um legado importante transmitido pelos professores foi a importância de uma perspectiva ampla da saúde. Em seu projeto de iniciação científica, conduzido sob orientação do professor Elizeu Antônio Rossi, ela pesquisou o enriquecimento do leite de soja com ferro e cálcio, tendo em vista a nutrição de crianças de comunidades vulnerabilizadas. “O projeto tinha esse foco na atenção da saúde a partir de uma perspectiva de prevenção, de assegurar que essas crianças fossem bem nutridas. Esse olhar para a saúde é algo de que sempre falo quando há oportunidade. Precisamos discutir sistemas e propostas de saúde, e não apenas debater doença, hospital e tratamento”, diz.
Quanto aos conselhos que poderia oferecer aos estudantes que neste momento estejam terminando a universidade e ingressando no mercado de trabalho, Lorice afirma que sempre tentou seguir sua paixão. “Sou incurável nisso. As bandeiras de luta que eu tenho não negocio. Eu sou feminista e não negocio. Acredito em modelos de saúde que são amplos e proveem acesso para todos. Acho que o principal ponto é nunca negociar aquilo em que você acredita, as suas verdades. Quando somos movidos por essas verdades, elas são tão intensas que os caminhos vão aparecendo”, diz.
Imagem: Roche/divulgação