sexta-feira, 22, novembro, 2024

Martha Lupo e as Mimosas

Para Daniela, Maria Luiza e Maria Ernestina

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Ignácio de Loyola Brandão

Entre as amizades de uma vida sempre estiveram as três irmãs Lupo, filhas de Aldo, o deputado. Alda, Maria Ernestina e Maria Martha, trio inseparável. Eram encontros no final da manhã diante do Colégio Progresso, quando aos 16 ou 17 anos íamos ver a saída das alunas e tentar flertes, como se dizia.. Ou convivíamos em festinhas juvenis, casamentos, carnaval. Em1955, o rock chegava, Elvis Presley rebolava com roupas brilhantes, o mundo começava a mudar, as três irmãs, mais Marilia Caldas, me deram uma peça de tecido vermelho, desafiando: “queremos ver se tem a coragem de fazer uma camisa”. Homem com camisa colorida? Vermelho, amarelo, fúcsia, estampada?  Iam pensar que eu desmunhecava, como se dizia em tempos intolerantes. Podia ser “cancelado”. Pois fiz e desfilei no footing de domingo. Crítico de cinema e colunista social frequentava tudo.  Estava também acostumado a vê-las passar, em passo rápido, pelo footing, entre o cine Odeon e o Araraquarense.

Mesmo depois que mudei para São Paulo e fiz carreira, eventualmente as encontrava. E elas casaram, fizeram suas vidas, famílias, os contatos diminuíram, os anos passaram. Mas a vida, diz um primo, Zezé Brandão, significa retirar, a cada momento, figurinhas do álbum, uma a uma. A primeira foi Alda. Passado um tempo, Martha, que foi, posso dizer, a mais próxima de mim. Quando, pouco tempo atrás vim para o encontro anual dos Lupo, no Salto Grande, Alda já tinha partido e Martha não apareceu, Daniela, a filha, me disse: “ela não está nada bem”. Para mim, aquela noite foi esquisita, dominado por emoções, nostalgias, me confundi, me atrapalhei em minha fala, de nada adiantou a experiência de 60 anos enfrentando o público. Até Liliana Aufiero, que me encarregou de escrever os “Cem Anos da Lupo” e com quem tenho mantido trocas frequentes de bilhetes, como se fazia antigamente na escola, bilhete na carteira, me estranhou naquela noite: “você parecia atabalhoado.” Aldo que me convidou acho que se arrependeu, senti…

Quantos rodeios. Quando estive na cidade para abrir os “Caminhos de Loyola”, com trechos de minha vida, ao passar pelo Shopping Lupo, na rua 12, Daniela chegou ao carro, me entregou um pacote e disse: “Sou a filha da Martha. Ela não conseguiu vir, não está nada bem, mandou um beijo.” Foi o último beijo amigo dela.

Tivemos em geral boas bibliotecárias, me relacionei bem com todas, mas penso que Martha merece uma placa com o agradecimento da cultura de nossa cidade. Entre outras, ela reincentivou a realização do Concurso Nacional de Contos Ignácio de Loyola que durou anos.  Algumas vezes – na verdade foram três – o júri se viu em um impasse quanto a alguns contos. Pediam socorro, como se eu fosse o rei Salomão literário. Os contos vinham a mim por fax, depois discutimos por telefone. Martha queria correção, nenhuma suspeição, imparcialidade.

Entre os que venceram este concurso está Luis Ruffato, com uma carreira impecável, hoje traduzido em várias línguas. Anos atrás, quando a maior feira de livros do mundo, a de Frankfurt, homenageou o Brasil, foi Ruffato quem falou em nome de nós autores brasileiros.  Eu o conheci aqui em Araraquara quando lhe entreguei o prêmio. Volta e meia encontro escritores que me dizem: “fui premiado em Araraquara”.

Quando me mudei para Berlim, em 1982, a convite do governo e das universidades alemãs, parte de minha biblioteca ficou aqui na Mário de Andrade, até que eu voltasse.  Foi minha sorte, ou teria que doá-la a algum sebo.  Não tinha onde coloca-la. Hoje, quando olho 9 mil volumes em um apartamento sei que o futuro deles será uma biblioteca, um centro cultural, um sebo.

Lembro de um sem número de atividades que Martha promovia, principalmente com crianças, atraindo alunos de escolas e professores. A cultura da cidade deve muito a ela e à Biblioteca, onde fiz minha formação e onde escrevi um capitulo de meu romance carro-chefe, “Zero”, traduzido para mais de dez línguas.

Há um detalhe sentimental. Em todos as vezes que Martha me chamou para algum evento, quando eu chegava o que encontrava sobre a mesa? Um garrafão de “Mimosa”, o refrigerante dos Ciomino, que me acompanha desde a infância. Ao menos desde que, acho que nos anos 50 ainda, destivaram a “Cotuba”, do Julio Cardoso Treme, e a “Prinz Cola”, uma coca araraquarense feita pelos Palamone. Restou a “Mimosa”, docíssima, que ainda tomo, apesar da diabetes. Uma das últimas vezes em que estivemos juntos, Martha e eu, foi em um aniversário da Mário de Andrade – talvez 50 anos? – ao qual estava presente Marcelo Manaia, que tinha sido bibliotecário na década de 50.

Fiz uma homenagem a ele, lembrando que Marcelo, filho de um tocador e consertador de sanfonas da Avenida Sete, tinha quebrado uma regra imposta pelo então – lá atrás – prefeito, pelo presidente da Câmara e pelo vigário da Matriz. Não se podia emprestar livros do Jorge Amado às jovens por serem imorais.  Uma “rebelião” liderada por Raphael Luiz, apelidado Dedão, Hugo Fortes, Sidney Sanches (foi presidente do STF nos anos 90), Sergio Fenerich, Luis Ernesto do Vale Gadelha, Geraldo Machado, Tshua, Heleninha de Souza Almeida – ou seja, os que frequentavam todas as tardes, todas, todas, todas, o lugar – fez Marcelo ignorar a censura. Jorge foi liberado, a biblioteca nunca teve tanta mulher frequentando. De quebra, naquela noite festiva, devolvi à biblioteca alguns livros que tinha “levado” comigo há décadas: “Setima Arte”, de Mota da Costa, “Designing for Moving Pictures,” de Gordon Craig, sobre direção de arte no cinema e “Loira Dolicocéfala”. de Pittigrili.

(Não, não façam o que fiz, mea culpa…)  Martha morreu de rir e na saída me deu mais uma Mimosa. Martha para sempre no meu coração e na cultura de minha terra.

Redação

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