Roberto Schiavon
Meu pai, o jornalista Sidney Schiavon, nasceu em 27 de maio de 1927. Se estivesse vivo, estaria completando 96 anos. Não sei se gostaria de ter 96 anos. Era muito ativo e bastante desconfiado em relação à passagem do tempo.
Quando dormiu e resolveu não acordar, na noite de 23 de junho de 1998, tinha acabado de completar 71 anos. Andava pensativo, meio ressabiado, por conta dessa mágica misteriosa da passagem do tempo.
Tenho 51 anos, idade de meu pai quando eu tinha 7 anos de idade.
Fui a “raspa do tacho”, quando nasci ele tinha 44 anos. Não era lá tão jovem, mas nunca conheci pessoa tão ativa mentalmente e fisicamente.
Sofreu um acidente de carro em 1977, justamente aos 50 anos, que o fez passar um ano internado no Hospital do Servidor Público, em São Paulo, onde passou por diversas cirurgias na perna esquerda.
Não era pra ter sofrido tanto, mas o erro de um ortopedista de Araraquara o fez passar por uma verdadeira “via crucis”, que incluiu o perigo de ter a perna amputada e uma infecção hospitalar.
Quando ele tinha a idade que tenho hoje, estava saindo do hospital com um aparelho na perna, que ficou um pouco mais curta que a outra, e usando bengalas. Mas isso não o parou.
Se às vezes fico meio preguiçoso pra fazer minhas coisas, imagino o esforço mental e físico dele pra encarar a vida de uma nova forma a partir dali. Encarou lindamente.
Em 1983, foi com os amigos de carro até Brasília, pra assistir a uma partida da Ferroviária pela Taça de Ouro. No meio do jogo, amarrou uma bandeira da Locomotiva na sua bengala, empunhada gloriosamente em meio aos torcedores grenás. Um estandarte em homenagem ao time, ao poder de seguir em frente e à vida.
Meu pai era um homem da comunicação antes mesmo de ser homem formado. Com 16 anos, já trabalha no “serviço de alto-falante”, um sistema de comunicação de curto alcance, que oferecia músicas, notícias e propagandas, precursor das emissoras de rádio.
Na década de 1950, era uma das estrelas da Rádio Cultura em Araraquara, onde moças formavam fila na porta para conhecer o locutor que trabalhava nas rádios novelas que ele mesmo escrevia.
Criou e apresentou programas de auditório e foi o criador do programa Janela Esportiva, um dos recordistas nacionais de permanência no ar.
Fundou a Associação dos Cronistas Esportivos de Araraquara (ACEA) e foi presidente da primeira liga de futebol de salão do mundo, a Liga Araraquarense de Futebol de Salão (LAFS), que criou em 1956, ao lado de Júlio Herculano Mazzei e com apoio de gente como Dorival Marcondes Machado, Arnaldo Frigo e Denisar Alves.
Foi professor de desenho formado pela Escola de Belas Artes de Araraquara, em 1956. Em paralelo à carreira de comunicador, ingressou no serviço público estadual em 1945 e fez carreira na Secretaria da Fazenda até se aposentar, em 1984, como fiscal de rendas.
Era maçom desde 1956 e fundou a Loja Morada do Sol 227, onde era orador e venerável mestre. Em 1975, aos 48 anos, se formou em direito e passou a trabalhar como advogado tributarista.
Sempre que escrevo sobre meu pai, tento evitar que o texto se transforme em um mero currículo, mas foram tantas as suas atividades, que fica meio que inevitável incluir essa parte.
O fato é que lembro do meu pai cercado de livros e devo a ele meu amor pela literatura. Sua biblioteca era um verdadeiro tesouro, com livros e revistas de ficção científica da década de 1950, a coleção de Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle, clássicos da literatura universal, como Moby Dick e Dom Quixote. Fui explorando tudo, enquanto formava meu próprio gosto literário.
Meu pai era um grande radialista e orador, mas igualmente um mestre da escrita. Quando ficou internado em São Paulo, gostava de ler as crônicas de Lourenço Diaféria na Folha de São Paulo e um dia pensou: “eu posso fazer isso”. No jornalismo impresso, começou a trabalhar ainda na década de 1940 no Correio Popular.
Mas lembro bem da sua fase no jornal O Imparcial. Ele era editor do Caderno de Esportes e responsável por diversas outras colunas, além de publicar diariamente suas charges e quadrinhos. Mas o espaço que mais gostava era o das crônicas, inspirado por Diaféria. Ali ele fazia literatura.
Criou diversos personagens, como o sapo-cururu Jaime III, verdadeiro lorde de tiradas inteligentes e irônicas. Em seus textos, comentava de forma brilhantemente bem-humorada os mais variados assuntos, desde as grandes questões universais até os problemas mais corriqueiros de nosso dia a dia.
Mantinha ainda uma coluna sob o pseudônimo Severo Bravo, na qual abordava questões da política local, e fazia críticas certeiras aos serviços públicos da cidade. Sempre de forma inteligente, sempre com muita classe.
Do meu pai herdei o amor pela Ferroviária e o amor pelo ofício de escrever. Em 1999, um ano depois dele partir, passei a trabalhar como jornalista no Jornal O Imparcial. Antes disso, já havia publicado meus textos sobre música no jornal. Ele era meu revisor. Que privilégio de arrepiar a alma.
O “núcleo duro” do jornalismo no Imparcial era formado por Carlos Augusto Donato, José Ângelo Santilli, o Chantily, e Marcia Bessa Martins. Lá estava também Luis Zakaib, que entrou um ano antes de mim. Todos capitaneados pela “Dona Cecília”, nossa chefe e mãezona, que coordenava tudo com sabedoria e firmeza. Colegas e amigos que ele me deixou também.
Herdei muito mais coisas do meu pai. Lembro que ele chegava do trabalho e em casa era meio introspectivo. Sentava-se à poltrona e assistia três e às vezes quatro filmes em seguida. Eu ria disso. Às vezes queria mostrar a ele filmes “cabeça” e ele queria ver filme policial, com perseguição e tiros. Não queria pensar mais, estava cansado, queria só se distrair.
Hoje entendo meu pai e me envergonho um pouco de ter sido tão chato com ele às vezes. Faço a mesma coisa quando quero esvaziar a cabeça e fugir do cotidiano da vida. Ele nos ensinou a gostar dos filmes, dos livros, de futebol, dos amigos, da vida. Era o primeiro a organizar os churrascos e o último a ir embora.
A música, que tanto amo, também sempre foi presente em casa. Uma vez comecei a mexer em seus discos antigos e encontrei pérolas absurdas, como gravações de Big Bands de jazz norte-americano e coisas assim. Eram muitas facetas, muitos interesses.
Só queria ter o mesmo brilhantismo e a mesma capacidade intelectual de fazer tanta coisa ao mesmo tempo e tanta coisa no tempo que me será destinado. Às vezes me perco, bagunço meus horários, quando vejo não fiz quase nada.
Aí lembro dele, às seis da manhã, tomando café em seu escritório em casa e começando a bater nas teclas da máquina de escrever, criando maravilhas. Minha admiração cresce, a cada dia que passa.
Quando ele foi embora, eu tinha 27 anos. Não esperava que ele fosse partir naquele momento. Ninguém esperava. Quando uma pessoa é tão ativa, não importa a idade, todo mundo acha que ela vai viver pra sempre. Fiquei revoltado, mas depois entendi que o tempo dele havia chegado e pronto.
Ele viveu várias vidas em uma. Fez da vida bagaço, sorveu tudo até o final. Deixou textos, quadros, amigos. Venceu cada milímetro do chão que percorreu com graça e coragem. Um dia a partida chegou, mas isso não importa. Ele venceu o tempo.